“A língua de um povo é a sua alma”
Johann Fichte (1762-1814)
Constitui já uso reiterado, porventura até costume, na Associação Caboverdeana, a comemoração de aniversários redondos de eventos e de personalidades cabo-verdianas que se distinguiram na nossa história e, muito em particular, na nossa cultura.
Nesta perspectiva, Armando Napoleão dá-nos em 2019 um duplo pretexto para recordar a sua vida e a sua obra, dedicada à língua cabo-verdiana. Armando Napoleão Rodrigues Fernandes, de seu nome completo, nasceu na mesma terra natal de Eugénio Tavares, a vila Nova Sintra, na ilha Brava, a 1 de Julho de 1889 e faleceu na Cidade da Praia a 19 de Junho de 1969. Em 2019 completam-se, portanto, 130 anos sobre o seu nascimento e 50 anos sobre o seu desaparecimento físico.
Filho de um santiaguense de ascendência portuguesa e de uma guineense viveu toda a sua vida adulta em Santa Catarina de Santiago, primeiro no sítio de Galo Canta, a cerca de três quilómetros de Cabeça Carreira, depois no Cutelo, na Assomada. Não longe, em Achada Falcão, situa-se a escola secundária inaugurada em 2008 que o homenageia e leva o seu nome.
Armando Napoleão casou no início dos anos 20 com Alice Lopes da Silva Fernandes, sobrinha do poeta pré-claridoso José Lopes (que, aliás, havia sido professor dele) e prima dos escritores Baltasar Lopes da Silva e António Aurélio da Silva Gonçalves. Depois da morte daquela, em 1935, casou ainda mais duas vezes e deixou muitos filhos, cerca de trinta.
Destacam-se entre estes as escritoras Ivone Fernandes Ramos e Orlanda Amarílis, ambas filhas da primeira mulher. Quando morreu, o seu filho mais novo, Rodrigo Rodrigues de Sousa Fernandes, que veio a ser poeta, contava apenas nove anos. Entre a sua descendência conta-se ainda o artista plástico e escritor, hoje Ministro da Cultura e das Indústrias Criativas, Abraão Vicente, seu neto.
Proprietário e comerciante, foi homem de muitas aptidões, entre as quais relojoeiro, fotógrafo, sapateiro, alfaiate, carpinteiro, até advogado provisionário, que desempenhou por vários anos. Era fluente em francês e inglês e foi ainda vogal da Câmara Municipal de Santa Catarina.
Mas foi a sua pesquisa sobre a língua cabo-verdiana que o faz ocupar um lugar na história da cultura de Cabo Verde. Durante a infância e juventude, acompanhou o pai pelas várias ilhas para onde aquele era transferido em serviço e teve assim contacto com as diversas variantes do crioulo nelas falado. Terá nascido aí o seu interesse pelo estudo do crioulo.
A língua cabo-verdiana tem sido objecto de estudo desde o século XIX.
António Paula de Brito é a este respeito um nome incontornável. Foi ele quem escreveu o “Apontamento para a Gramática do Crioulo que se fala na Ilha de Santiago de Cabo Verde“, em versão bilingue, publicado pela primeira vez em 1885, que inclui um vocabulário com quatro páginas, na modalidade crioulo-português. O próprio autor diz, na sua dedicatória, que “é prumeru trabadju des kolidadi ki nu ten, sendu sertu ki pa-m faze-l N ka atxa un só iskritu pa sirbi-m di moldi”(1).
Ele utilizou um alfabeto de base fonológica, onde cada fonema corresponde a um grafema e vice-versa, que acaba por ser precursor do modelo de alfabeto proposto no Colóquio do Mindelo de 1979 – cujos 40 anos já evocámos nesta mesma Sala – e depois adoptado no ALUPEC – Alfabeto Unificado para a Escrita da Língua Cabo-Verdiana.
O ALUPEC, aprovado a título experimental pelo Decreto-Lei nº 67/98, de 31 de Dezembro, veio a ser instituído como Alfabeto Cabo-Verdiano pelo Decreto-Lei nº 8/2009, de 16 de Março, cujo 10º aniversário de vigência se completou no ano em curso. Outro aniversário redondo, a merecer reflexão sobre os seus resultados práticos e as perspectivas futuras
Também os nomes de Pedro Cardoso e de Eugénio Tavares não podem ser esquecidos, além de tudo o mais que nos legaram, pelo seu contributo para o estudo e promoção da língua crioula das ilhas. De qualquer modo, os primeiros trabalhos de cunho já marcadamente científico, pela formação académica dos seus autores nesta área, terão sido “O Dialecto Crioulo de Cabo Verde”, de Baltasar Lopes, publicado em 1957 (que contém um extenso léxico português/crioulo), e depois, em 1961, “Cabo Verde: Contribuição para o Dialecto Falado no seu Arquipélago”, de Dulce Almada Duarte, infelizmente há pouco desaparecida. Nunca será demais recordá-la, até pelo destacado papel que assumiu, desde o tempo da luta de libertação, ela que foi Combatente da Liberdade da Pátria.
Qual então o papel de Armando Napoleão Fernandes neste percurso?
Ele tem o enorme mérito de, não sendo linguista nem académico, ter escrito o primeiro dicionário crioulo/português, em que reuniu léxico de todas as ilhas, embora, como nota Manuel Veiga, não reúna grande parte do universo lexical do crioulo. Durante mais de 20 anos, o autor recolheu, compilou, estudou e ordenou milhares de palavras, com o seu significado e origem, trabalho que já estaria, segundo Manuel Ferreira, concluído antes de 1940 mas que até à morte do autor nunca veria a luz do dia.
Foi sua filha Ivone Ramos quem, a partir do manuscrito original, veio a publicar essa obra postumamente, em 1991, no Mindelo, sob o título “O Dialecto Crioulo – Léxico do Dialecto Crioulo do Arquipélago de Cabo Verde“. A edição de 500 exemplares rapidamente esgotou e nunca saiu uma segunda edição. – uma versão fotocopiada.
Em testemunha escrito para a revista “África – Literatura, Arte e Cultura” (fundada e dirigida pelo escritor Manuel Ferreira nos anos 1970 – o qual, como sabem, de origem portuguesa, casou com Orlanda Amarílis e foi, portanto, genro de Armando Napoleão), Ivone Ramos refere que seu pai “desde moço começou a trabalhar na recolha de palavras para fazer um dicionário de crioulo e trazia sempre consigo pedaços de papel e lápis. Sempre que ouvia uma palavra diferente, anotava-a.”
Segundo o próprio, o seu trabalho consistiu em “compilação de um léxico etimológico e ortográfico, como necessário para o conhecimento das palavras, sons, termos onomatopaicos e frases empregadas na expressão usual, bem assim o popular, o que constitui o conjunto desse idioma”.
O Léxico de Armando Napoleão é considerado pioneiro na promoção e valorização da língua cabo-verdiana. Sobre ele disse Manuel Veiga, no seu “O Caboverdiano em 45 Lições“, de 2002, que “Para além do valor etno-linguístico dessa obra, é sobretudo a importância histórico-cultural que mais nos surpreende. Numa altura em que os “zelosos patriotas”, no dizer de Pedro Cardoso, reclamavam a supremacia e o exclusivismo da língua portuguesa; no momento em que o CCV era objecto de desprezo e de ataques, surge um Napoleão Fernandes a demonstrar, de forma indirecta, que, afinal, essa língua tinha dignidade, tinha direito a ser objecto de ciência e de estudos. A atitude do autor é cultural, mas também é política.” (p. 22)
Para além do léxico, deixou uma gramática incompleta da língua crioula que sua filha Ivone Ramos ainda terá pensado publicar, mas esta faleceu em 2018 sem concretizar esse projecto. Armando Napoleão chegou, no entanto, a escrever um prefácio para essa gramática, intitulado “Em prol do idioma de Cabo Verde“, no qual problematiza algumas questões sobre o crioulo. Diz ele a certo passo o seguinte, em modo de explicação para o seu projecto (citação que retirámos do texto escrito em jeito de introdução ao Léxico pelo referido Manuel Ferreira): “(…) só tinha em vista, em face de um estudo aturado e atento, fazer uma gramática em que demonstrasse que a origem do crioulo de Cabo Verde, tido como um dialecto bárbaro e fugindo a qualquer codificação, era derivado do português genuíno, aprendido dos primitivos habitantes, dos colonos, dos senhores, desde a colonização dessas ilhas (…) encontrando-se ainda em termos arcaicos que acompanham a evolução da língua misturada já de termos ou palavras de origem africana – da vizinha Guiné -, mas de significação precisa que embora derivados uns dos outros, não têm equivalentes (como se expõe no Léxico) e que por isso prevalecem ou subsistem a par dos sinónimos da língua portuguesa e que não dizem tanto.”
É certo que hoje existem já, felizmente, vários dicionários. Temos, nomeadamente, o «Dicionário do Crioulo da Ilha de Santiago (Cabo Verde)», trilingue, com tradução para o alemão e o português, publicado em 2002 sob a direcção do alemão Jürgen Lang, o “Dicionário Caboverdiano – Português” de Manuel Veiga, cuja 2ª edição – aquela de que dispomos – data de 2012. Temos mais recentemente, em 2015, a publicação do “Capeverdean Creole – English Dictionary“, de Manuel João Gonçalves.
Mas, para além do significado cultural e político que Manuel Veiga lhe apontou, a importância linguística do léxico compilado por Armando Napoleão fica bem evidente no texto inicial da apresentação do “Dicionário Prático Português Caboverdiano (Variante de Santiago)“, de 2002, coordenado, entre outros, pela portuguesa Mafalda Mendes e pelo francês Nicolas Quint, que nos permitimos citar. Reza este texto o seguinte: “Esta obra, elaborada na primeira metade do século XX por um caboverdiano amante da sua cultura, constitui um verdadeiro tesouro do crioulo de Cabo Verde. A obra colige cerca de 20 000 palavras caboverdianas provindas de todas as ilhas do Arquipélago e traduzidas para português. Tanto quanto pudemos averiguar no que respeita ao santiaguense, a informação dada por Napoleão Fernandes é extremamente fidedigna. Não poucas vezes, encontrámos no Léxico a atestação de muitas expressões idiomáticas ou especializadas proferidas por Aires Semedo [outro dos coordenadores do dicionário] ou outros falantes do caboverdiano. Em outras ocasiões, a obra permitiu-nos relembrar palavras ou sentidos de palavras que já tínhamos esquecido. Para além disto, a obra (…) é um testemunho quase único de inúmeras palavras já caídas em desuso e cuja existência desconheceríamos se não dispuséssemos do seu trabalho.” (p. 13)
Como também salienta Manuel Brito-Semedo, em prosa publicada no seu blog “Esquina do Tempo“, “O Dialecto Crioulo (…), para além de um dicionário com definição/descrição em português das palavras usadas no falar do dia-a-dia, é uma importante fonte cultural, pois contém a descrição de quase todas as manifestações culturais cabo-verdianas (música, tradições, gestas, etc.) contém uma recolha de centenas de provérbios e ditos populares. Para além disso, contém palavras que foram caindo em desuso ao longo dos anos.”
A título de exemplo, poderemos mencionar os seguintes casos de ditos ou provérbios (manteve-se a grafia do texto original):
“tudo ágo ta pága forno”– “para o fim em vista tudo serve” (p. 1)
“arguém co sê boca é cuma nhor Dés co sê mundo” – “cada cabeça cada sentença, ou quem conta um conto acrescenta um ponto” (p. 15-16)
“Únde galo ta canta, galinha ca ta cacarejâ” – “quando discute o marido a mulher não se deve intrometer” (p. 78)
Quanto a manifestações culturais, podemos referir:
“Batuco” – “batuque, cantilena acompanhada de cimbôa que canta, soluça, geme e chora, conforme o canto da viola que se depenica, e da chabéta que segue o ritmo, ora brando e cadenciado e ora forte ou repicado, acompanhando a letra e a cadência (finaçon), seguido do torno e finda no pága-bióla.” (p. 11)
“Colâ” – “acto de dar umbigadas ao ritmo do som do tambor e de assobios com muitos maneios e requebros nas festas populares de st.º António, S. João (…) e S. Pedro” (p. 36)
“Guarda cabeça” – “reunião, no sétimo dia depois do parto, para se guardar e festejar o neófito” (p. 82)
E, por fim, palavra mais adequada não se me ocorre nesta data, em que muito justamente celebramos a sua proclamação como Património Cultural Imaterial da Humanidade, “Morna” – “canto e dança dolente, em compasso quaternário, impregnado de melancolia em que o povo soluça e canta o seu pesar, a sua tristeza e o seu queixume em tom plangente, dolente e soluçante; é tão genuinamente caboverdeano como tango para a Argentina e o fado para Portugal” (p. 108)
Terminarei com uma última citação de Manuel Ferreira: “se a Armando Napoleão Fernandes tivesse cabido a sorte de publicar a sua obra quando a terminara (antes de 1940) a ele justamente seriam dadas as honras de pioneiro (depois dos homens do século XIX e das breves propostas de Pedro Cardoso) e os louvores e o proveito como autor do primeiro trabalho de fundo sobre o crioulo de Cabo Verde.”
José Craveiro
O presente texto constituiu a base da palestra dada na Associação Caboverdeana, em Lisboa, a 13/12/2019, sobre «Armando Rodrigues Fernandes e o seu Dicionário do Léxico Cabo-Verdiano
(1) Adoptou-se no texto a grafia do Alfabeto Caboverdiano.