O ensino do crioulo (língua cabo-verdiana) como língua estrangeira constitui um desafio particular tanto para professores quanto para alunos. A falta de um reconhecimento plenamente assumido enquanto língua com todas as suas funções elaboradas, por parte das entidades competentes, faz com que o crioulo seja frequentemente encarado como língua deficiente ou incompleta. Tal repercute-se numa atitude, por parte de alguns dos potenciais interessados na aprendizagem desta língua, de não levar bem a sério o carácter definido das suas regras de gramática e ortográficas. Acresce, ainda, a ausência de um regulamento de classificações de competência linguística para a língua cabo-verdiana universalmente reconhecido, assim como de uma entidade habilitada a proporcionar os respectivos certificados ou diplomas. Assim, ensinar crioulo e avaliar as habilidades adquiridas por quem o estudou acaba por ser algo que se vai regendo por critérios individuais do ou da docente.
Afirmo isto pensando nomeadamente na situação existente em Portugal, o que não quer dizer que se ponham em causa as experiências do ensino do crioulo feitas no seio da imigração cabo-verdiana nos EUA e em países como os Países Baixos ou o Luxemburgo que, porventura, terão contribuído para que a língua cabo-verdiana tenha alcançado um patamar mais elevado enquanto disciplina integrada no ensino de línguas estrangeiras.
O caso de Portugal não deixa de ser específico. Haver laços históricos, culturais e linguísticos que unem Portugal a Cabo Verde não significa por si só que se verifique, entre os portugueses, uma propensão particularmente aumentada para a aprendizagem da língua cabo-verdiana. Curiosamente, é na proximidade entre os dois países, ou melhor, no carácter desta proximidade, que reside um obstáculo, relativo embora, pois não se mostra intransponível, a uma aprendizagem quantitativamente mais abrangente e qualitativamente mais profícua.
Assim, no plano histórico-político surgem dúvidas quanto ao carácter do crioulo enquanto língua própria, já que foi a iniciativa colonizadora portuguesa que lhe deu origem: “Não será o crioulo resultado de uma interpretação deficitária do português?”. Tais resquícios de uma consciência alimentada ao longo de séculos de colonialismo nunca foram debelados consequentemente, a não ser na área restrita da linguística. Excepto nalguns momentos, a política cabo-verdiana não tem sido de molde a tornar claro e explícito, para todo o mundo saber, o estatuto do crioulo enquanto língua independente. Tacticismo, oportunismo e elitismo têm impedido que tal acontecesse efectivamente.
Do lado português, a política durante as primeiras décadas pós-25 de Abril pautou-se pelo enaltecimento do facto do português ter sido definido como língua oficial exclusiva dos cinco países africanos emanados da derrota do colonialismo português, deixando de lado o papel de outras línguas existentes naqueles países. Só ultimamente, a língua cabo-verdiana deixou de ser hostilizada no contexto da política linguística de Portugal, que dantes a encarava como entrave ao incremento do uso da língua portuguesa nas ilhas.
Concomitantemente, o interesse pelo crioulo enquanto língua a estudar manteve-se muito reduzido em Portugal até há poucos anos atrás, notando-se, contudo, que uma atitude segundo a qual, em Cabo Verde, o português seria sempre suficiente para garantir a comunicação, recentemente tem vindo a ceder lugar a um comportamento mais realista e pragmático que vê, efectivamente, no crioulo o meio de expressão que mais garantias dá para chegar mais próximo das pessoas.
Para isso terá contribuído um processo que, malgrado as reticências das políticas dominantes, tem incrementado o uso do crioulo em áreas dantes reservadas ao português, nomeadamente as situações formais, discursos, noticiários, comunicação na Internet, etc., sendo quem visita as ilhas em trabalho ou como turista confrontado com uma realidade linguística cada vez mais caracterizada pela omnipresença da língua cabo-verdiana (cada vez mais sujeita ao processo de descrioulização, diga-se de passagem, o que abriria outro capítulo a extravasar já esta comunicação). Dizer, como no virar do século ainda muitos dos meus formandos cá em Portugal diziam depois de terem visitado Cabo Verde, que “em Cabo Verde, toda a gente fala português”, pois a isso muitos se viam obrigados pelas circunstâncias, fosse qual fosse o seu domínio efectivo da língua, já deixou de corresponder à realidade. Hoje, com mais pessoas a saber falar português do que anos atrás, embora muitas vezes com descuido e/ou deficiências, elas não se inibem de falar crioulo nas mais variadas situações, facto que vem ajudar a que mais falantes de português como língua materna procurem aprender a falar crioulo.
Olhando para o plano linguístico propriamente dito, deparamo-nos com a particularidade de, para os falantes de português – língua materna não familiarizados com o funcionamento das línguas crioulas, a proximidade a nível lexical entre português e crioulo induzir em erro quanto à existência de analogias a nível gramatical. Um dos maiores problemas no ensino do crioulo para alunos que têm o português como língua materna são as formas verbais do crioulo que na sua aparência sugerem um determinado significado, que deriva da forma notoriamente parecida no português, mas que na realidade não o têm (ex.: “bu kume” não significa “[tu] comes”, “nu ta bebe” não significa “[nós] estamos a beber”).
À dificuldade de apreender as diferenças no relacionamento das categorias do tempo e do aspecto no emprego dos verbos entre o crioulo e a maior parte das línguas de origem europeia acresce, no caso do português, a perplexidade perante o carácter enganador das afinidades superficiais. No campo lexical, situações semelhantes existem quando em relação a um significado histórico comum evoluíram divergências que acabam por produzir significados diferentes (“xintidu” – “sentido”/“cuidado”, “rubera” – “ribeira”/”aldeia”). Também o grau de abertura divergente de vogais em verbos, substantivos e adjectivos quando são palavras tendencialmente idênticas (“bebe” – vogal fechada em crioulo, aberta em português, “mesa” – vogal aberta em crioulo, fechada em português, “seku”/”seco” – vogal aberta em crioulo, fechada em português) causa estranheza nos alunos, sendo a pronúncia à portuguesa um dos erros mais persistentes no processo de aprendizagem do crioulo.
Tudo isto não põe em causa, porém, a vantagem que constitui a similitude de parte considerável do léxico para a aprendizagem do crioulo por parte de falantes de português. Esta circunstância proporciona, obviamente, largo aproveitamento no ensino da língua cabo-verdiana para esse grupo de pessoas. Para vencer as barreiras acabadas de abordar, revela-se decisivo partir do binómio cultura/língua como vector orientador das aulas. As acepções divergentes de determinadas palavras, frases e expressões idiomáticas entre o português e o crioulo ganham contornos mais nítidos e compreensíveis quando apresentadas em contextos concretos da realidade cultural e social cabo-verdiana. Por isso, a leitura de textos literários, artigos de opinião ou ensaios, assim como a audição de músicas com destaque para as respectivas letras, de noticiários e de conversas acessíveis em programas de televisão, tudo em crioulo, entenda-se, e seguido de análise e debate por parte dos alunos, integram a metodologia inerente ao ensino da língua.
O contacto directo com a comunidade cabo-verdiana existente a nível local (no caso concreto, na área metropolitana de Lisboa), através de almoços e jantares, bailes, espectáculos musicais e outros, debates sobre os mais variados temas associados a Cabo Verde, e também de aulas práticas realizadas onde esta comunidade reside, completa esta orientação.
Falar e praticar o crioulo de Cabo Verde sem inibições, aprender bem a língua em consciência da plenitude funcional e comunicativa dela, apreender os valores da cultura cabo-verdiana, eis o lema deste projecto de ensino!
Hans-Peter (Lonha) Heilmair
(comunicação destinada ao Colóquio Internacional da VIII Quinzena da Cultura Cabo-Verdiana em Lisboa, 26.10.2019)
Nota do editor: infelizmente, e por razões de agenda, o autor não pôde comparecer ao Colóquio Internacional acima referido para apresentar presencialmente a sua comunicação no quarto painel do mesmo