Homenagem à Pianista e Compositora Tututa Évora pela Associação Caboverdeana no âmbito da realização do Colóquio Internacional integrado nas actividades da VIII Quinzena da Cultura Cabo-Verdiana em Lisboa
Eu queria, antes de mais, saudar a todos e desejar uma tarde agradável de convívio e de partilha. Queria também dizer que o gesto de homenagear a minha mãe, no ano do Centenário do seu Nascimento, deixa-me a mim e a toda a minha família profundamente sensibilizada.
Gostaria por isso de agradecer à Direcção da Associação Caboverdeana em Lisboa, particularmente ao nosso amigo José Luís Hopffer Almada, pela iniciativa de homenagear essas duas figuras da nossa cultura, dois caboverdianos que contribuíram para a nossa tão falada Riqueza Cultural Caboverdiana: o poeta Mário Fonseca e a pianista compositora Tututa, minha mãe.
Permitam-me que renda uma pequena homenagem ao nosso poeta, de escrita profunda e sensível, ao amigo e vizinho na Achada de Santo .António – Cidade da Praia, com quem tivemos, o meu marido e eu, o privilégio de conviver, tendo ele sido colega do Liceu do meu marido e um seu filho meu aluno no Liceu Domingos Ramos.
Devido a problemas pessoais e de saúde, não posso estar em Lisboa nesta data para partilhar convosco este momento de memórias da minha mãe Tututa, falando dela, mas também escutando, porque estão certamente presentes na cerimónia muitos amigos que privaram com ela e que quererão partilhar connosco algo de que ainda se recordam.
Eu tenho ouvido muitos testemunhos.
Numa homenagem recente, alguém sugeriu-me a recolha e compilação dessas memórias num livro.
Saibam que, embora não estando fisicamente presente, estou convosco em pensamento nesta tarde de sábado do dia 26 de Outubro de 2019.
Falar da minha mãe traz-me um turbilhão de memórias e de saudades; os seus últimos oito anos de vida, ela viveu-os comigo cá na Praia, e após a minha reforma pude estar mais tempo com ela, dar-lhe mais atenção, entendê-la melhor por todas as razões, principalmente porque eu saí de casa muito jovem.
A minha mãe, Epifânia de Freitas Silva Ramos Évora, Tututa de seu nome artístico, nasceu em Mindelo, em Janeiro de1919. Criada num ambiente musical em que o próprio pai era músico e compositor, cedo começou a tocar vários instrumentos, mas o piano foi, desde sempre, a sua maior paixão. Desde os onze anos já participava das actividades culturais no Liceu e dava concertos com o Professor, Senhor Reis. Ela contou-nos que, ao fim de alguns anos, o Professor, lhe confessou que já lhe havia ensinado tudo o que sabia; que ela teria de ir para uma Academia, fora de Cabo Verde, caso quisesse continuar.
Mas isso não foi possível porque aos dezasseis anos perdeu o pai e teve de assumir responsabilidades com a família. A carreira em S. Vicente foi brilhante, até os seus trinta anos, quando se casou e teve de se mudar para a Ilha do Sal onde já estava o marido; mas o piano continuou sendo a sua grande paixão. Tocava para familiares e amigos e ensinava música em casa já que a vida, com muitos filhos, não lhe permitia continuar a carreira.
Só muito mais tarde, com os filhos adultos, ela pôde aceitar convites para actuar fora de Cabo Verde.
Tarefa difícil, a de ser mulher, dizia o nosso pai, mas que a nossa mãe conseguiu de forma completa. Perante o dilema: mãe/artista, ela priorizou sempre a família, relegando para o segundo plano uma carreira que nos anos quarenta já se mostrava de sucesso. Mas Tututa fez a sua carreira, a carreira que ela escolheu…
Eu precisaria de muito tempo (neste caso, de imensas folhas) para falar da minha mãe, 95 anos de uma vida plena de muita coisa vivida, sofrida, mas também plena do imenso amor que ela tinha para dar e no qual ela via a essência da vida.
Permitam-me que deixe a palavra aos especialistas da música para falarem da Tututa; aliás, ouvimos regularmente referências ao legado que ela deixou, ao contributo que ela teve na Música Caboverdiana, em particular na morna.
Mas, como pessoa, muito resumidamente posso falar da: filha dedicada que ela foi, da esposa amante e companheira, da mãe carinhosa, embora exigente, da avó terna e parceira, da amiga cúmplice.
A minha mãe era de uma sensibilidade profunda. Tudo o que ela fez na vida, fê-lo sempre com muito amor, muita dedicação, mas também com muita firmeza de caracter: na música, na família, em sociedade, no dia-a-dia…
E, se quem ama também sofre, ela também sofreu como mulher.
Os desabafos saíam-lhe em forma de poemas, sentada ao piano, seu companheiro de sempre, para logo a seguir, com passinhos de dança (só dela), mandar a tristeza embora e continuar as lides da casa. Viver com alegria foi sempre o seu lema e ela procurou sempre transmitir isso, não apenas aos filhos e netos, mas também aos amigos, conhecidos, a todos os que se cruzaram com ela e que de uma força precisaram.
Outra característica dessa sensibilidade da minha mãe era sua paixão por crianças que era impressionante, fora do comum; perante uma criança, ela não resistia, a aproximar-se, a pegá-la ao colo, a fazer uma brincadeira ou um carinho. O carinho e a ternura dela para com as crianças eram manifestados até no falar: criava palavras mimosas, a outras dava uma sonoridade própria, o que se pode ver em algumas das composições infantis.
Em encontros sociais, festas, etc., era notória a preferência que todos, mesmo os mais jovens, tinham pela sua companhia, pela alegria que ela transmitia, pelo seu companheirismo, pelos seus passos de dança, pelo humor, pela ironia. Aliás, a minha mãe sozinha era capaz de fazer a festa, quando esta não estava animada; a sua boa disposição mudava logo tudo à sua volta.
Mas, a par dessa sensibilidade tão profunda, minha mãe também era possuidora de uma firmeza de caracter única; foi uma mulher lutadora toda a sua vida. De uma infância feliz, numa família abastada de S. Vicente, a luta começou aos dezasseis anos quando os pais perderam todos os bens e, logo a seguir, ela ter ficado órfã de pai. Ela teve de ir trabalhar.
Mas, para mim, a maior luta que ela travou foi sem dúvida a de enfrentar a sociedade e a própria família, nomeadamente o pai e os irmãos para poder realizar o seu maior sonho, o sonho de ser pianista, de “tocar e ouvir palmas”.
A força interior dela nunca a deixou desistir de nada na vida; essa força que ela emanava e transmitia (ou tentava transmitir) a todos os que a rodeavam, não apenas aos filhos e à família.
Segundo nos contou, quando ela anunciou ao Pai que queria ser pianista – isso nos anos trinta do século passado –, ele ter-lhe-á respondido : “ oh, Epifânia, estás doida?” Mas ela manteve-se firme na sua decisão, brigou com tuto e com todos; o que ela queria era ser pianista, tocar em lugares públicos. Mal imaginava que esse sonho realizado viria a ser também o meio de sustento para a família, após o falecimento do pai.
Tututa venceu, conseguiu realizar o seu sonho, tocou piano toda a sua vida, abriu portas para que as mulheres pudessem continuar a ganhar outras lutas. Mulher amiga, atenta à injustiça, à violência, às desigualdades, solidária, particularmente com as mulheres, interventiva como se pode ver na coladeira “Tramóia”, Tututa terá dado o primeiro passo na luta pela igualdade de género, ao enfrentar os tabus da sociedade dos anos 30/40, tocando no Grémio, no Café Royal e em outros espaços públicos, tendo sido ela a única mulher então acompanhada por músicos homens, à noite, o que era inconcebível na época.
Espero não ter sido muito longa; deixo aqui o registo de uma parte do legado que a minha mãe nos deixou a todos, porque, pela amizade, simpatia e popularidade, a nossa mãe foi um pouco mãe, amiga e conselheira de todos! Mesmo nas situações mais difíceis, ela encontrava sempre uma palavra de conforto, uma solução para o problema ou agia em conformidade. É este legado que iremos certamente preservar para as gerações vindouras.
As memórias da minha mãe são muitas e diversas, não cabem numa mensagem escrita! Por isso termino, juntando-me a vós, nesta Homenagem à Tututa, à minha sempre querida mãe, dizendo que ela estará sempre nos nossos corações:
“na nôs musca, na nôs cultura, na nôs stória, na nôs tude, na Cabe Verde e na nôs diaspora”
Agradeço uma salva de palmas para a TUTUTA, o que ela sempre gostou de ouvir, o preço que ela cobrava pela sua arte!
Um muito obrigada a todos.
Por: Lourdes Pereira (Filha da Homenageada)*
Praia, 24 de Outubro de 2010
*Nota do editor/coordenador da revista: texto lido na sessão de homenagem por José Luís Hopffer Almada