A obra e o percurso literário de Teixeira de Sousa

A obra e o percurso literário de Teixeira de Sousa

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Por Glória de Brito

O percurso pessoal e profissional de TS é indissociável da sua escrita. Fez os primeiros estudos no Fogo, e os liceais no Mindelo, onde desde logo revelou os seus dotes literários com dois textos no primeiro número do jornal Juventude, órgão do liceu: “Tchuba qu’é nôs governador” (1) (1936), seguido de um pequeno ensaio sobre uma tradição típica da ilha do Fogo designada “Curcutiçam”, no segundo número.

Em Lisboa, durante os anos da formatura em Medicina e Cirurgia (1938-1945), seguida de especialização no Porto (Medicina Tropical e Sanitária), começa a participar nas tertúlias do grupo neo-realista português, sobretudo a partir de 1940,  onde conheceu a “plêiade de jovens que constituía a chamada geração de 40”: Manuel da Fonseca, Alves Redol, Manuel Pavia, Piteira Santos, Soeiro Pereira Gomes, Jorge de Macedo, Rui Feijó, Joaquim Namorado, Sidónio Muralha, Fernando Namora, Francisco José Tenreiro e, mais tarde, o cabo-verdiano António Nunes, introduzido pelo próprio escritor.

Inserido no seio do grupo, começou a colaborar em actividades de carácter literário e político e a escrever pequenos ensaios e contos de natureza sociológica impregnados dos princípios neo-realistas, mas representando as problemáticas cabo-verdianas e africanas. Destacam-se os artigos publicados no jornal estudantil Horizonte [2], nas revistas Vértice [3]Certeza[4] e Claridade [5]e, ainda nos 40, em Antologias de Contos e Poemas de Vários Autores Modernos Portugueses [6]. Como se sabe, o grupo português neo-realista organizou a colecção Novo Cancioneiro para publicar a poesia neo-realista e Antologias de Textos para divulgar a ficção dos escritores ligados a esse movimento. 

O contacto do escritor com os elementos e o ideário do neo-realismo marcará a sua escrita a vários níveis. Porquanto, Teixeira de Sousa é tanto devedor da herança de Claridade, pela importância que dá à representação de temas alusivos às realidades do arquipélago, como do Neo-Realismo português, pela forma como configura o discurso na representação das injustiças e dos fenómenos de discriminação social e racial, ou ainda na criação de situações diegéticas transformadas em instrumento de consciencialização política e de denúncia da incúria do regime colonial.

Após uma curta missão em Timor como médico do Quadro de Saúde do Ultramar (1946-1949), Teixeira de Sousa regressa à sua ilha Natal onde foi Delegado de Saúde durante cinco anos (1949-1954), e dedica-se intensamente aos afazeres clínicos e a escrita literária fica relegada para segundo plano.

No entanto, vai publicando regularmente, no Cabo Verde Boletim de Propaganda e Informação [7], em revistas de carácter científico e só a partir de 1972, já com 52 anos, começa a dedicar-se plenamente à sua obra ficcional. Contudo, tanto a experiência médica, como os intensos anos vividos em Lisboa, serão determinantes na fermentação da sua obra romanesca. O contacto com o sofrimento, o isolamento e a exiguidade em que vivia o povo das Ilhas, sobretudo no Fogo e, igualmente, o profundo conhecimento da riqueza do património étnico e cultural estão plasmados nas ficções.

A obra de Teixeira de Sousa pode organizar-se em três áreas diferentes: 

Prosa de ficção (contos e romances), publicados pela seguinte ordem: Contra Mar e Vento (1972) (único livro de contos), seguindo-se os romances Ilhéu de Contenda (1978), Capitão de Mar e Terra (1984), Xaguate (1987), Djunga (1990), Na Ribeira de Deus (1992), Entre Duas Bandeiras (1994) e Ó Mar, de Túrbidas Vagas (2005). 

Trabalhos científicos e textos (in)formativos no âmbito da medicina (saúde pública, medicina tropical, nutrição).

Ensaios, crónicas e artigos, versando sobre temas de saúde, nutrição, sociologia, ecologia, literatura, pedagogia, política, destacando-se:

  • 2 ensaios na revista Claridade (n.º 5,1947; N.º 8, 1958);
  • 2 artigos na revista Certeza (n.º 2, 1944; N.º 3, 1945);
  • 77 textos na revista Cabo Verde Boletim de Propaganda e Informação (1949 -1964);
  • 90 crónicas no jornal Terra Nova (1997-2006);
  • Mais de cinco anos na Presidência da Câmara Municipal de São Vicente (1966); 
  • Cabo Verde e a sua gente (1958);
  • Cabo Verde e o seu destino político (1974);

No conjunto deste espólio ensaístico, assumem relevância os dois artigos para a revista Claridade bem como a obra de autor Cabo Verde e a sua gente[8] que ainda conservam a sua actualidade sobre os traços identitários étnicos e sociológicos da sociedade foguense.  Igualmente, os dois artigos enviados para a revista Certeza vinculam o escritor a esse movimento e também à experiência neo­­-realista. E ainda o texto Cabo Verde e o seu destino político[9] no qual assume publicamente a sua posição relativamente à independência de Cabo Verde.

De entre os setenta e sete textos publicados na revista Cabo Verde, é de considerar alguns marcantes e até incómodos ao poder político, como o texto em que condena a “Emigração para São Tomé” (1955) [10]  que o isenta das críticas no texto polémico, Consciencialização na Literatura Cabo-verdiana de Onésimo da Silveira (1963). Outros revelam a sensibilidade do futuro escritor e crítico literário perante os dramas sociai e o sofrimento do ser humano, evocados no artigo “Faça-se água” (1956) [11] no qual analisa um poema de Jorge Barbosa. [12] Igualmente, o artigo “O Homem e a Terra” (1958) [13], um pequeno texto de uma enorme profundidade e sabedoria transmite a intrínseca relação entre o homem e a terra e os factores que modelam de forma inconfundível a idiossincrasia dos povos nos diversos paralelos geográficos.

Nalgumas das noventa crónicas do Jornal Terra Nova, Teixeira de Sousa revela o lado da facécia, a verve humorística e a faceta de contador de estórias. Estas particularidades são recorrentes nas ficções, sendo uma das estratégias da sua escrita que incorpora na acção principal várias estórias independentes. São por vezes essas estórias que constroem o clima e os valores morais e éticos da época recriada.

A obra Mais de cinco anos na Presidência da Câmara Municipal de São Vicente [14] relata a experiência e a apreciações de TS sobre o seu mandato enquanto presidente da Câmara do Mindelo durante 1960-1965. Inclui também os discursos proferidos nas diversas sessões e manifestações sociais ou culturais que ocorreram no exercício dessa função. No seio desses textos de âmbito administrativo e político, alguns manifestam expressividade estética.

Teixeira de Sousa foi ainda distinguido com os seguintes prémios Literários:

  • 1.º Prémio Fialho de Almeida da Sociedade Portuguesa de Escritores Médicos, atribuído a Capitão de Mar e Terra e Djunga;
  • 2.º Prémio Claridade atribuído ao romance Ilhéu de Contenda;
  • 3º Prémio Jorge Barbosa atribuído a Capitão de Mar e Terra (1988), ambos do Ministério da Informação, Cultura e Desporto da República de Cabo Verde.
  • No âmbito da investigação em medicina, obteve o Prémio Medicina Tropical do Instituto de Medicina Tropical, atribuído ao trabalho “Fluorose dentária em Cabo Verde. Estudo de um núcleo endémico na ilha de S. Vicente”, em co-autoria Manuel de Meira (1956).

Obra ficcional

A obra ficcional de Teixeira de Sousa compõe-se de um livro de contos com três edições pelas Publicações Euro-América e, mais recentemente, uma edição pela ACL (Academia Cabo-verdiana de Letras), e sete romances, seis dos quais estão organizados em duas trilogias que decorrem em dois espaços específicos representativos de dois microcosmos insulares distintos do ponto de vista geográfico, histórico-cultural, económico, étnico e até linguístico: a trilogia do Fogo, composta pelos romances Ilhéu de Contenda, Xaguate Na Ribeira de Deus, e a trilogia de São Vicente mais, concretamente do Mindelo, que integra os romances Capitão de Mar e TerraDjunga e Entre Duas BandeirasPosteriormente, o autor publicou Ó Mar de Túrbidas Vagas, um ano antes da sua morte.

Fig. 1 – Capas dos contos e romances de Teixeira de Sousa e capa do filme Ilhéu de Contenda.

A primeira publicação de Ilhéu de Contenda, em 1978, pela Editorial O Século, ligava uma imagem de um sobrado a um dito de teor apocalíptico que reenvia para o fim da classe hegemónica: “Sobrado que sobrou/ dos sobrados soçobrados/ orgulho-ilusão duma classe/ que o tempo destroçou”. (Cf. figura 1). Esta obra foi transposta para cinema, em 1996, com realização de Leão Lopes e cuja capa do filme homónimo consta na figura. Escrevi um artigo sobre os processos desta adaptação, publicado na revista Nova Síntese 12 (2017)[15].

 Ilhéu de Contenda e Capitão de Mar e Terra são as duas primeiras obras publicadas, constituindo a génese das trilogias, sendo, por conseguinte, os pilares que articulam a trama ficcional tecida nos restantes romances que completam os dois ciclos romanescos, embora cada um possua autonomia própria. As trilogias de Teixeira de Sousa representam momentos determinantes da evolução física, socio-histórica, económica, política e cultural das ilhas onde decorre a acção quese estende desde os finais do séc. XIX até à época da soberania nacional. Três romances (Na Ribeira de DeusIlhéu de Contenda e Capitão de Mar e Terra) reconstituem períodos socio-históricos que reenviam para a época colonial e os outros três (DjungaXaguate e Entre Duas Bandeiras) remetem para a época pós-colonial.         

No entanto, a ordem da publicação dos romances não corresponde à ordem da sucessão corológica dos acontecimentos. Ou seja, o romance cujo tempo diegético é mais remoto, Na Ribeira de Deus (decorre entre 1917-1919) só foi publicado em 1992. Nele se recria o Fogo no princípio do séc. XX, como se pode conferir na Fig. 2.

RomancePeríodo CronológicoEspaçoOrdem de Publicação
Na Ribeira de Deus (1992)
Capitão de Mar e Terra (1984)      
Ilhéu de Contenda (1978) 
Entre Duas Bandeiras (1994)     
Djunga (1990)     
Xaguate (1987)      
1918 – 1920)
1937 – 1938 
1955 – 1956 
1974 – 1975
1980 -1981
1986 -1987
Fogo
Mindelo
Fogo
Mindelo
Mindelo
Fogo
5.º 
2.º 
1.º 
6.º 
4.º 
3.º
Fig. 2 – Períodos cronológicos e espaços representados

Do ponto de vista da estruturação romanesca, Teixeira de Sousa recorre a uma matriz narrativa comum a todos os romances. Ou seja, o narrador instala-se numa faixa cronológica, sempre sensivelmente de quase dois anos, e num determinado contexto geográfico e sociocultural (Fogo ou Mindelo) e recria essa época com recurso a uma enorme variedade de personagens, acontecimentos e peripécias que mergulham na realidade textual e extratextual convocada na diegese. Contudo, por vezes, há necessidade de evocar acontecimentos anteriores ou posteriores, procedendo a saltos no tempo, através de analepses ou prolepses, trazendo para o presente da enunciação factos esclarecedores da narrativa.

 A título de exemplo, o período retraçado na Ribeira de Deus coincide com o final da Primeira Guerra Mundial cujos ecos se refratam no texto. Mas, é também o período crucial da história de Cabo Verde em que emergem, por um lado, as primeiras figuras de emigrantes, ditos “americanos”, com a circulação dos primeiros dólares, a criação do BNU (Banco Nacional Ultramarino), índice da necessidade de regular as operações de câmbio e o comércio das exportações.

Por outro lado, assiste-se aos primeiros sintomas da decadência da geração da classe da aristocracia rural, detentora dos bens fundiários e comerciais, cujo declínio constitui a matéria de relevo em Ilhéu de Contenda. Esta obra também retrata o alargamento urbano da cidade de S. Filipe e a consequente deslocação dos funcos para a periferia, fornecendo uma imagem da extinção do ruralismo e exclusão de animais domésticos do novo espaço urbanizado.

A função documental implícita nestas descrições, articula-se de forma denunciadora com o grupo de personagens fictícias da classe desfavorecida, mobilizado pela personagem Rompe, um braçal e músico [16] que discorda das ordens da edilidade, reputando-as de medidas segregacionistas. Portanto, a temática do racismo é recorrente ao longo do romance, bem como o fenómeno emergente da ascensão do mestiço. Para conseguir agenciar de forma coerente todos estes factos, o autor faz incursões no passado, evocando antecedentes da personalidade e acções das personagens.

A grande maioria das personagens jovens e crianças deste romance (Felisberto, Alice, Catalina, Noca, Jujú, Anacleto Soares, a família Veiga e outros), bem como os ambientes e espaços estão representados em Ilhéu de Contenda ou Xaguate com outras feições modeladas pela passagem do tempo.

Já na recriação do período cronológica de 1937-1938, em Capitão de Mar e Terra, cuja diegese decorre no Mindelo, o leitor é transportado para o prelúdio da Segunda Grande Guerra Mundial, cujos ecos também se repercutem no texto, e para um contexto insular cosmopolita, urbano, marítimo, laboral e cultural muito diferente do que é descrito na trilogia do Fogo. Os acontecimentos relevantes da época são convocados nesta obra sob forma ficcional de teor documental – a fundação do movimento Claridade, as actividades dos Sokols, a decadência do Porto Grande, a crise das companhias de carvão inglesas, a presença da comunidade inglesa, a animação do liceu, do Carnaval, da Academia de Música e outros de âmbito social e psicológico. 

Todos estes acontecimentos são agenciados por uma variedade de personagens, envolvidas em inúmeras situações, comportamentos, valores e sentimentos, intrínsecos à época, de forma fragmentária ou por vezes alusiva. O escritor revela a sua mestria na concepção de ambientes e quadros sociais, íntimos e telúricos do quotidiano do Mindelo que permitem aceder ao âmago de uma época socioeconómica e cultural, assim como aos cambiantes da psique humana, incarnada pelas múltiplas personagens. De igual modo, se verifica o recurso à anacronia, em particular, para analisar a personalidade e reconstituir o trajecto pessoal e profissional do protagonista Alfredo Araújo que, por sua vez, está associado a um certo número de factos relevantes da história de Cabo Verde e do mundo.

 Temáticas desenvolvidas nos contos e romances

O livro de contos Contra Mar e Vento, contem dez narrativas breves que abordam, desde logo, as temáticas que Teixeira de Sousa irá retomar e aprofundar nos futuros romances. Ao escritor se devem as primeiras figurações literárias do mundo rural e urbano da ilha do Fogo, assim como de temas até então não abordados na literatura:

Outros temas recorrentes nos seus contos e ficções inserem várias outras realidades:

Todas estas temáticas estão esboçadas de forma embrionária, mas densa nas narrativas breves e são, posteriormente, desenvolvidas na sua obra romanesca com complexidade e pormenor, enriquecidas por outras perspectivas. A título de exemplo, a realidade do sobrado implica a casa do morgado e a rede económica e axiológica que sustentava os pilares da sociedade esclavagista e o morgadio. E no conjunto das várias obras, Teixeira de Sousa consegue dar uma visão completa dessa realidade complexa, apreendida no seu processo de desagregação e declínio.

As personagens Aniceto Brasão e as suas quatro filhas do conto “A Família de Aniceto Brasão”são as primeiras criações simbólicas da decadência dos sobrados, que se cruzam com os seus substitutos na nova ordem social, neste caso Firmino, um mestiço enriquecido. Elas são apreendidas em fase inicial do desmoronamento, enquanto que no conto “Na Corte d’El-Rei D. Pedro” e em Ilhéu de Contenda surgem já arruinadas e em fase de acomodação à nova situação social. Assim, elas traduzem as experiências individuais, as reacções de passividade, de inconformismo ou conformismo, associadas à consciência de um contexto psicossocial novo. Como afirma Teixeira de Sousa “verifica-se a passagem de uma sociedade estratificada para uma sociedade horizontal”. Esta concepção permite dar uma visão das causas e das consequências da desintegração deste grupo social após cinco séculos de dominação.

Uma das particularidades das obras do escritor é a ausência de linearidade narrativa. O fio narrativo é sucessivamente fragmentado pela incursão de episódios ou pequenas estórias e peripécias que por vezes assumem alguma autonomia e que se manifestam, em geral, numa única ou duas ocorrências. Estas incursões, expressas em breves cenas, inserem na narrativa derivações em domínios de referência cultural, musical, económica, étnica ou até socio-histórica. Aliás esta estratégia é usada pelos neo-realistas. As personagens que intervêm de forma episódica ou ocasional são, em geral, inspiradas em figuras reais, reduzidas a poucos traços de comportamento ou de carácter ou até anónimas, e cruzam-se com as principais e secundárias. Contudo, na sua curta intervenção, revelam uma importância significativa na recomposição de ambientes culturais, nocturnos, religiosos, rurais e outros. 

No romance Capitão de Mar e Terra, por exemplo, a representação do universo da música é ilustrada por uma personagem episódica, identificada à figura real do Sr. Reis e é pretexto para evocar o papel importante que ele assumiu no ensino musical, na época colonial evocada, como salienta o seguinte excerto:

Apareceu (Sr. Reis) um dia em São Vicente como chuva caindo inesperadamente. Logo deu início ao seu mister de professor de música e regente da Banda Municipal, preparando vagas sucessivas de jovens na arte de Pã, em instrumentos de sopro e de percussão, menos no canto. Tentou organizar coros, mas falhou sempre até que desistiu. Agora, no violino, no piano, no saxe, na trompa, na requinta, no clarinete era um futra. O surgimento deste homenzinho na cidade do Mindelo ficou para sempre envolvido em grande mistério. Sem mulher, nem filhos, sem correspondência no correio, diziam uns que viera da Guiné fugido da perseguição política, outros para se homiziar por crime de outra natureza. O certo é que chegou, arriou o ferro e jamais deixou de beber água do Madeiral e de ensinar música à filhas-família, aos moços de sapatos e de pés descalçosa quantos enfim desejassem dedilhar uma rebeca ou assoprar para um trombone de varas. (Capitão, p. 152-153).

De igual modo, a figura real de Mochim do Monte só aparece uma vez em Capitão de Mar e Terra e serve de pretexto para evocar a evolução da Morna, de forma alusiva e até poética:

– Morna bonita! – exclamou Alfredo Araújo após um trago de cocktail.
– Ah, calé, eu não me conformo com estas mornas modernas, assim aos pedaços, agora uma rebencada, logo depois outra rebencada, feito um gago a falar. Mornas eram as de Eugénio Tavares, redondinhas sabinhas deveras.
 – Você há-de compreender que cada época tem o seu estilo – sentenciou o capitão de longo curso.
 – Ah, não, isto parece um manco a andar, pé aqui, pé acolá. Morna como deve ser é morna seguidinha, vaga atrás de vaga.
 – Espécie de calema – atalhou Alfredo Araújo excitado com a imagem do mestre Talefe. (Capitão, p. 102). 

As referências implícitas nestes enunciados sobre a evolução da Morna, jogam sobre o horizonte cultural do leitor. Elas podem passar despercebidas a quem desconhece o contributo de Mochim do Monte na recriação do ritmo da Morna, fixada por Eugénio Tavares na Brava e por B. Leza em São Vicente.

A única presença na narrativa do Sr. Reis, ligada à soirée musical organizada pela sua escola de música no Eden Park, convoca, de forma implícita, a história da formação de uma geração de grandes músicos cabo-verdianos, como Luís Morais, Jotamonte, Tututa, Morgadinho e outros, por aquele mestre  de nome completo José Alves dos Reis, que também dirigiu a Banda Municipal de São Vicente, durante vinte e cinco anos. [17]

A realidade religiosa é convocada no romance Djunga através de António Chiche, um barbeiro que preside a sessões de espiritismo no Centro Redentor e recebe informações dos espíritos de luz sobre as causas de fenómenos extraordinários, considerados milagres:

Qual milagre! Foi um acontecimento estranho, dos mais estranhos deste planeta. Nessa noite, António Chiche convocou uma sessão extraordinária de espiritismo onde os espíritos de luz explicaram que houve no momento uma pronta e forte intervenção do astral superior para evitar duas mortes antes do prazo. (Djunga, p. 20).

Também numa primeira leitura, a realidade aqui aludida pode não ser apreendida na sua total dimensão, uma vez que está ligada ao domínio de práticas da vida espiritual que funcionam à margem do quadro institucional da religião católica, sendo por isso mantidas num certo hermetismo. Mas, pode constituir um motivo para o leitor conhecer a história desta organização existente de facto [18] e a função que desempenhou na época, na sociedade cabo-verdiana. O próprio Baltazar Lopes, frequentador do Centro, no poema “Rapsódia da Ponta-de-Praia[19], ilustra o ambiente das sessões de “limpeza psíquica”, assim como a repercussão na vida dos seus adeptos. O conhecimento desta realidade revela-se oportuno para a interpretação do poema.

Numa outra cena breve, de expressão humorística, o narrador diverte-se a descrever as duas actividade de António Chiche que é procurado por Djunga, personagem biografada no romance homónimo, para ouvir as suas explicações espirituais, enquanto ele lhe corta o cabelo:

Uma destas lojas era a barbearia de António Chiche, mais forte em espiritismo do que na arte de Fígaro. Não havia cliente que não saísse dali com a cabeça rapada e o cérebro lavado com água fluídica do Centro Espírita Redentor do Rio de Janeiro. (Djunga, p. 13)

Acresce ainda a alusão à personagem Fígaro da peça O Barbeiro de Sevilha (1775) que pode constituir uma pequena deriva literária e musical. Aliás, Paul Ricoeur sublinha que “É sobretudo às obras de ficção que nós devemos, em grande parte, o alargamento do nosso horizonte de existência[20].

Referimos apenas dois exemplos ilustrativos da técnica narrativa de Teixeira de Sousa que se caracteriza pela intervenção de uma pluralidade de personagens principais e secundárias, agenciando uma variedade de acontecimentos e intrigas com recurso a personagens esporádicas, que criam um efeito de real, pela analogia com figurais verídicas.

Bibliografia

BRITO, Glória de

Figurations réalistes dans les récits de Teixeira de Sousa. Tese de Doutoramento defendida na Université de Paris IV – Sorbonne/Paris IV, em Études Portugaises, Brésiliennes et de l’Afrique Lusophone, Paris, Dezembro de 2012.

Les récits de Teixeira de Sousa: Un regard sur le Cap-Vert, Paris, Éditions PAF (Presses Académiques Francophones), 2014. ISBN: 978-3-8416-2689-9.

Teixeira de Sousa: Trajectórias e obra ficcional”, in O Ano Mágico 2006 Olhares Retrospectivos sobre a História e a Cultura Cabo-verdianas (Coord. José Luís Hoppfer C. Almada).
Praia: Instituto da Biblioteca e do Livro / Ministério da Cultura, 2008, p. 577-610.

SOUSA, Henrique Teixeira de.

Contra Mar e Vento. Lisboa: Publicações Europa-América, [1972], s.d., 2ª. éd.
Ilhéu de Contenda, Lisboa: Publicações Europa-América, 1978.
Capitão de Mar e Terra. Lisboa: Publicações Europa-América, 1984.
Xaguate. Lisboa: Publicações Europa-América, 1987.
Djunga. Lisboa: Publicações Europa-América, 1990.
Na Ribeira de Deus. Lisboa: Publicações Europa-América, 1992.
Entre Duas Bandeiras. Lisboa: Publicações Europa-América, 1994.

Almada, 26 de Outubro de 2019


*Investigadora no CLEPUL e docente na USALMA.

[1] Conto escrito na sequência de um trabalho escolar ordenado pelo Prof. Baltasar Lopes. Veja-se Michel Laban. Cabo Verde. Encontro com Escritores. Porto, Fundação Eng. António de Almeida, s. d., p. 163.

[2] A propósito do Negro”, in Horizonte, Ano I, Lisboa, 22/04/1942, p. 6; “Florêncio Virou Lobisomem” (conto), in Horizonte, Ano I, Lisboa, 05/06/1942, p. 6.

[3] “Dragão e Eu”, in Vértice, n.º 4/7, Coimbra: Fev./ 1945, p. 9-28.

[4] “Da Claridade à Certeza”, in Certeza, n.º 2, Mindelo, Jun./ 1944, p. 4 e 6.

[5] “A estrutura social da Ilha do Fogo em 1940”, in Claridade n.º 5, p. 42-45. S. Vicente, 1947 (foi escrito em 1940); “Sobrados, lojas & funcos, contribuição para o estudo da evolução social da ilha do Fogo”, in “Claridade n.º 8, p. 2-8. S. Vicente, 1958.

[6] “Noite do Guarda-cabeça”, in Carlos Alberto Lança e Francisco José Tenreiro (org). Contos e Poemas de Vários Autores Modernos Portugueses. Lisboa, Imprensa Lucas, 1942, p. 7-12; “Calmaria” in Carlos Alberto Lança e Francisco José Tenreiro (org), Contos e Poemas. Autores Modernos Portugueses. Lisboa, Imprensa Lucas, 1942, vol. 2 p. 36-45. “Sueste” (poema sob o pseudónimo Biloca José da Cruz), Id., p. 102-104; “Termo de Responsabilidade”, in Contos e Novelas, Coimbra, Académica Editora, 1948, p. 133-146.

[7] Durante a publicação de Cabo Verde Boletim de Propaganda e Informação, Praia (1949-1964), Teixeira de Sousa foi um colaborador assíduo, tendo escrito cerca de sete dezenas de artigos, abordando temas de saúde, literatura, pedagogia, ecologia, psicologia humana, entre outros. 

[8] Henrique Teixeira de Sousa, Cabo Verde e a sua gente. Praia, Imprensa Nacional de Cabo Verde, Edições Propaganda, 1958.

[9] Henrique Teixeira de Sousa, Cabo Verde e o seu destino político. Mindelo, Edição do Autor, 1974, p. 6. 

[10] Artigo publicado na revista Cabo Verde Boletim de Propaganda e Informação n.º 65, Ano VI, Praia, Fev./ 1955, p. 3-4.

[11] Cf. “Faça-se Água”, in Cabo Verde Boletim de Propaganda e Informação, n.º 78, Praia, Mar./ 1956, p. 22.

[12] Trata-se do poema “Caminho” publicado em Caderno de um Ilhéu (1956) e inserido em Jorge Barbosa, Obra Poética, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002, p.109-110.  

[13] Cf. “O Homem e a Terra”, in Cabo Verde Boletim de Propaganda e Informação, n.º 109, Ano X, Mindelo: Mar./1958, p. 1-2.

[14] Henrique Teixeira de Sousa, Mais de Cinco Anos na Presidência da Câmara Municipal de São Vicente. Águeda, Edição do Autor, 1966. 

[15] Glória de Brito, “Ilhéu de Contenda: do romance ao filme”, in Nova Síntese 12. Textos e contextos do neo-realismoNeo-Realismo no cinema. Lisboa, Edições Colibri, 2017, p. 189-207.

[16]  Esta personagem parece ser inspirada na figura real, típica da Ilha do Fogo, o Príncipe de Ximento (1896-1958) que, tal como Rompe, foi braçal e músico. Improvisava canções criticando a realidade social, tendo sido deportado para Angola, onde ficou durante três anos. Depois da Independência, o seu legado musical foi reconhecido pela Câmara de São Filipe, facto evocado no romance Xaguate.

[17] Cf. Gláucia Nogueira “As bandas de música (VI) – Nho Reis”, in Paralelo 14, 9 Mar./2005, disponível no site da internet: http://www.portaldecaboverde.com/p14/index.php?option=com_content&task=view&id=517&Itemid=71

[18] Trata-se do Centro do Racionalismo Cristão fundado por Marinho de Burgo, um emigrante cabo-verdiano que regressou ao país, vindo do Brasil, onde se inspirado em Alain Kardek. Cf. João Vasconcelos, Espíritos Atlânticos: um Espiritismo Luso-Brasileiro em Cabo Verde, 364 p. Tese de Antropologia Social e Cultura, Universidade Lisboa/ Instituto de Ciências Sociais, 2007, p. 9-19.

[19] Poema publicado na revista Claridade, nº 5, Set./1947, p. 13.

[20] Cf. Paul Ricœur, Temps et Récit, Paris, Seuil, 1983, vol 1, p. 151.