Canissado
O delírio do canissado não acaba. Porque se acaba fica na retina da gente essa impressão violenta da festa bárbara. Grotesco boneco com corda à cinta, vai o mascarado em cabriolas hilares levado pelo povo contente que esquece as misérias que tem. Ressoam reboam os tambores nos tímpanos. E o ruído seguido é como um traumatismo sobre os nervos. A populaça passa num desvairado entusiasmo crescente que a aguardente desenfreia. Homens dos botes e das labutas da enxada, coladeiras, prostitutas de todas as idades, pobres almas ao desabrigo, batem palmas e gritam esganiçadas cantigas no ritmo pagão do canissado dessa noite de São João.
Cena
A bêbada grotesca dança e esganiça uma dança desvairada uma cantiga descompassada – qual lembrança ancestral dos serões do Congo! A garotada aplaude e grita e assobia a miserável preta que sua nessa cabriola doida ao sol, como um palhaço exótico que viesse fazer um número de se rir às gargalhadas mas que no fundo tivesse um quê de trágico e melancólico! Ao longe na esquina ficou sozinha a olhar uma criança pequenina – a filha da bêbada!…
NOTA
Os dois poemas encontram-se riscados a lápis no exemplar da Biblioteca Nacional do caderno datilografado Poemas do Livro Ambiente (Para a Leitura de José Osório de Oliveira e Baltazar Lopes), localizado na Praia e datado de 1939. Conforme a carta-prefácio deste caderno, ele destinava-se justamente à leitura crítica dos destinatários: “Há ainda seleção a fazer”, escrevia Jorge Barbosa; “guardo-a para depois das vossas sugestões”.
Há ainda outros dois poemas, “A menina da lenha” e “Emigrante”, não incluídos em Ambiente (1941), que encontraram neste livro melhor expressão em “A moça que foi ao batuque” ou “Prostíbulo”, tematicamente semelhantes ao primeiro, como em “Irmão”, que constituiu a versão definitiva de “Emigrante”.
O interesse de “Canissado” e de “Cena” deve-se, em particular, à possibilidade de testemunharem o processo de assimilação e superação do modelo proposto pelo Diário (1929) de António Pedro. Conforme ensinou Elsa Rodrigues dos Santos (1989), o próprio Jorge Barbosa, numa carta dirigida a Manuel Lopes, datada de 21 de outubro de 1933, em que partilha catorze poemas do futuro Ambiente, reconhecia que tinha este livro “uma intenção que [supunha] avizinhar-se da do António Pedro quando publicou Diário”.
A matéria que estes dois poemas podem suscitar, como a absolutamente necessária reedição do Diário de António Pedro, tem que ver, portanto, com a distinção, no âmbito do modernismo cabo-verdiano, 1) do futurismo concetual de João Lopes, 2) do presencismo crítico e plástico de Jaime de Figueiredo, 3) do provincianismo social e íntimo de Jorge Barbosa ou 4) do simbolismo tardio de António Pedro – que no Diário se tinge subitamente de paisagem povoada.
A revisão crítica do suposto surrealismo do Diário de António Pedro, como das acusações de racialismo e sensualismo (Manuel Ferreira) ou de leviandade turística no mesmo Diário (Manuel Ferreira) ou no “Proto-Poema da Serra d’Arga” (Alfredo Margarido), será desenvolvida noutro lugar. Aí se dará conta, por exemplo, da opinião de António Pedro sobre a poesia de Jorge Barbosa ou da irrupção de certos estereótipos denunciados por Manuel Ferreira nos próprios contos de Morna (1948), aliás reeditados em Terra Trazida (1972).
Quanto ao surrealismo que alguns leem no Diário, deve notar-se, desde logo, que o contacto produtivo com este movimento só acontecerá, em rigor, por 1935 e 1936, durante a jornada parisiense de António Pedro, da qual resultarão objetos como o Manifesto Dimensionista ou, poucos anos depois, o óleo “A ilha do cão” ou Apenas Uma Narrativa (ambos de 1941). O singularíssimo “Proto-Poema da Serra d’Arga” (1948) atesta que a paisagem surrealizada por António Pedro se situa no Minho, onde veio a estabelecer-se. Mas parece ser a partir do Diário cabo-verdiano que, nesta obra proteica, diferentes lugares geram diferentes estéticas.
A ortografia dos dois poemas de Jorge Barbosa foi atualizada; excetuou-se o termo “canissado”, que tem interesse filológico.
Rui Guilherme Silva