Filho de um Deus Maior

Filho de um Deus Maior

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Boa tarde a todos; em primeiro lugar queria começar por agradecer à Associação Caboverdeana de Lisboa o convite que me foi endereçado, através do Dr. José Luís Hopffer Almada, para apresentar esta obra, e também, naturalmente, ao autor, Alexandre de Deus Monteiro, que confiou na minha leitura sem me conhecer previamente, o que me confere uma responsabilidade acrescida.

O romance que nos traz hoje aqui fala-nos da condição de emigrante, neste caso específico de cabo-verdianos em Espanha, onde, segundo consta, a emigração cabo-verdiana está longe de ser numerosa, mas que, talvez também por esse motivo, vive, através destas páginas, alguns conflitos peculiares relativos à sua integração, sobretudo legal e consequentemente social e profissional. Por outro lado, este romance não se resume a um testemunho ficcionado dos desafios e da dureza do processo migratório, para quem emigra e para quem acolhe. Ele vai além disso: é também uma história de amizade e de amor, de partilha, de resiliência, de coragem e de orgulho, que enaltece o compromisso permanente com a ideia de sobreviver com dignidade e de superação individual, através da persistência e do investimento constante na valorização do património cultural de origem (nomeadamente de várias expressões musicais), no conhecimento aprofundado do país de destino e na prática desportiva regular.

Em suma, o texto tem romance, crónica social, intriga e mistério, e existe uma intenção evidente de usar a literatura como instrumento de mudança de mentalidades, sendo qua a própria ficção se alimenta da realidade, consubstanciando assim um ciclo completo.   

Uma obra deste género, para ter interesse, para cativar o leitor, deve ter conteúdo, estilo, ritmo e uma narração coerente e suficientemente surpreendente para suscitar a curiosidade até à última linha. Embora sejam diversas as formas de contar uma história, sabemos que alguns preceitos básicos devem ser cumpridos: desde logo uma introdução forte, um desenvolvimento lógico e uma conclusão que surpreenda, atemorize, ou, pelo contrário, resolva os conflitos principais deixados em aberto ao longo da narrativa. Há um equilíbrio precário entre uma história densa, longa, porque repleta de detalhes considerados essenciais para o entendimento pleno, e uma história desnecessariamente prolongada, fátua, com excesso de adjetivação ou descrições aflitivamente alongadas. Embora se trate da sua primeira obra de ficção, (e sublinhamos o facto de ser a primeira porque estamos certos de que outras se seguirão, tendo em conta a quantidade e a originalidade de episódios e experiências que o autor testemunhou, exploráveis do ponto de vista literário), acreditamos que esta obra superou  com inegável êxito este desafio inicial; a história tem quase trezentas páginas nas quais cada parágrafo e cada capítulo se justificam, uma vez que possuem uma função literária evidente, descrições claras e vivazes, que permitem ao leitor localizar a ação e envolver-se na trama.

Muitos dos autores estreantes sucumbem à tentação de dar a palavra ao narrador de uma forma quase exaustiva, esquecendo-se involuntariamente de dar vida às personagens através dos diálogos. Neste romance, ao contrário, o autor ultrapassou sem dificuldade aparente esta armadilha, pois as suas personagens — entre emigrantes cabo-verdianos na Madrid dos anos 80, pessoas de outras origens geográficas de dentro e fora de Espanha, homens e mulheres de vários escalões etários, de várias origens socioeconómicas e fibra moral de textura díspar — mantêm diálogos permanentes mediante os quais vão contando a história pelas atitudes expressas, através das controvérsias e disputas, ou até por meio das conversas casuais que alinhavam, enquanto o narrador vai fazendo pausas, displicentemente, e se dispõe a deixar falar as suas criaturas. (Note-se que até os animais deste romance têm nomes que simbolizam força: Hércules e Estalone!)

Permitam-me agora que me detenha um pouco mais nestas personagens: neste romance vamos encontrar várias dezenas de vidas que se intersetam, algumas desde o início, outras que se vão aproximando de maneira a surpreender o leitor, pois que à partida nada faria prever que tivessem qualquer relação entre si. Cada uma delas possui uma história de vida que se reflete na sua linguagem, na mentalidade, nos comportamentos. Ao longo da história vamos percebendo que é possível exercer o livre arbítrio e ter uma influência crítica sobre o nosso destino e que nem tudo é predestinado por uma condição social menos favorável. O Sul, só por si, não é determinante, e alguns conseguem, mercê de uma força interior notória e de um esforço sem tréguas chegar a bom porto e viver dentro dos limites da ética, com tranquilidade e projetos realistas de futuro, ambicionando usufruir plenamente da vida. É pelo menos o que nos conta o nosso herói, Carlos, conhecido no submundo do crime como Baba, um ex-delinquente (mercê da forte coação a que foi sujeito e de algumas escolhas desastrosas), que se converte num cidadão responsável, dinâmico e interventivo, promotor da vida associativa da diáspora africana, que se pretende integrada e integrante. Através das ligações de Carlos, no passado ou no presente, na sua aldeia natal ou em Madrid, cidade que o acolheu, vamos conhecendo as facetas mais perversas mas também mais enternecedoras do ser humano.

Algumas figuras deste romance merecem particular destaque, por serem pitorescas, arrojadas ou invulgarmente vulneráveis, revelando-se profundamente humanas: Magdalena, a proprietária de uma pensão escusa, dona de um coração de oiro e com uma capacidade de perdoar ilimitada. Pepe Gallego, um ex-marginal arrependido com um raro talento para a pintura; dona Balbina, uma mulher idosa de forte carácter que aspira a uma vida de liberdades individuais que nunca conheceu e clama pelos seus direitos com veemência e civismo …musculado; António, um mordomo enfatuado que navega entre as águas turvas de um preconceito difuso e generalizado e a tentação de ensaiar passos hesitantes em direção ao desconhecido. Estas personagens, e muitas, muitas outras, serão as vossas guias de viagem e terão por isso a missão de vos desvendar a ação das histórias que se entrecruzam. Muitas delas são conhecidas por alcunhas, o que é vulgar no mundo do crime, por forma a ocultar a verdadeira identidade fora do restrito meio em que se movem. Alcunhas que não se devem confundir com os chamados “nominhos”, frequentes em Cabo Verde, os quais são normalmente atribuídos na infância e encontram justificação nas características pessoais, na história familiar ou social.

Por estas páginas conhecemos também alguns locais de interesse histórico e turístico de Madrid e de Cabo Verde.

São inúmeras as referências geográficas, diretas ou indiretas, que nos permitem localizar a ação.

Desde logo em Madrid, tentando descodificaras pistas, pensamos encontrar:

O relógio da Torre Espanha(entendemos que o autor se possa estar a referir ao relógio da antiga Casa Real dos Correios);

aGran Vía, que é uma das maiores avenidas de Madrid; a Escola Primária Maria Cristina (provavelmente inspirada no colégio Maria Cristina, um colégio privado muito bem cotado); a Estação Norte, que aparentemente se refere a uma antiga estação ferroviária desativada em 1993 e reabilitada em 1995 com o nome de Estação do Príncipe Pío; a Rua dos Negros, que hoje seria parte da rua de Tetuán, situada no centro de Madrid; o Rio Manzanares, um afluente de outro rio que por sua vez é afluente do rio Tejo, e que tem sido um cenário recorrente para pintores, poetas, ensaístas e romancistas; o Parque do Retiro, uma área com mais de 15 000 árvores e que segundo consta tem a árvore mais antiga de Madrid; e finalmente o Museu do Prado, sobejamente conhecido, e a Casa de Campo, um dos principais pulmões verdes de Madrid que conta com inúmeras instalações desportivas.

Em Cabo Verde se situam as recordações de infância do protagonista e de alguns dos seus próximos. Aí encontramos o cheiro das papaias e da cana-de-açúcar e uma referência explícita a Nossa Senhora da Graça, que é também uma freguesia pertencente ao concelho da Praia. Há uma menção implícita à mentalidade e às práticas dos meios pequenos (a liberdade consentida das brincadeiras de infância ao ar livre) mas também ao carácter vinculativo dos compromissos assumidos entre famílias, uma vez que todos se conhecem e existe um convívio alargado e próximo.

Quanto à Galiza, através das magníficas descrições de Pepe Gallego (um narrador quase autónomo dentro desta obra que nos traz os tons da sua terra natal), lembramos Rosalía de Castro, escritora e poetisa considerada a fundadora da literatura galega moderna, e também Ramón del Valle-Inclán, dramaturgo, poeta e novelista que fez parte do modernismo em Espanha, assim como Alfonso Daniel Manuel Rodríguez Castelao, um dos fundadores do nacionalismo galego, dono de uma finíssima ironia, que confessava: “Fiz-me médico por amor a meu pai; não exerço a profissão por amor à humanidade”.

O autor também nos proporciona referências temporais  tanto como espaciais — através de pequenos apontamentos subtis, como o facto de ter fixado a ação na década de 80 do século passado, algures no verão, e de se referir claramente a duas bebidas bem conhecidas dos espanhóis: a cerveja Mahou, que data de 1890, e o brandy Magno, nascido em 1955.

É também curioso notar que, deliberadamente ou não, existem algumas referências linguísticas interessantes tanto no texto do narrador como nas falas das personagens: o termo “caramba” (e neste texto contei mais de uma dezena de ocorrências!), é uma palavra conotada com alguns países da América Latina, nomeadamente o México (séries televisivas de grande audiência como os Simpsons ajudaram também a perpetuar esta crença), embora aparentemente seja também utilizada em Espanha, mas sobretudo por pessoas de mais idade, não obstante não ser considerada — ainda — um arcaísmo. O termo “desalmados” (também com várias ocorrências neste texto) seria, segundo consta, muito utilizado nas Canárias, pelo que pode indiciar a origem de algumas personagens ou o convívio a que estão sujeitas. E por último a presença de termos como “Nho” e “Don”, ambos sinónimos de “senhor”, respetivamente em língua cabo-verdiana e em castelhano, permitem enfatizar e emprestar um colorido local ao texto, bem como, ocasionalmente, situar a narrativa em solo cabo-verdiano ou espanhol.

Para concluir salientaria que grande parte da ação desta obra se passa numa associação denominada Ruta de África, um espaço de convívio criado por iniciativa de indivíduos da diáspora cabo-verdiana em Madrid. É descrito como um local de encontro e confraternização de pessoas de várias origens geográficas e distintas culturas, que se pretende um lugar acolhedor e inclusivo, onde as manifestações de índole cultural tenham um papel de relevo. Esta descrição também se adapta ao lugar onde nos encontramos no momento….fazendo por isso todo o sentido a vossa presença aqui e agora, em torno deste tema e deste livro.  Mais uma vez os meus parabéns ao autor. E obrigada pela vossa presença.

Luísa Fresta

Lisboa, 31-10-2019