Henrique Teixeira de Sousa, médico, nutricionista e autarca cidadão de duas pátrias

Henrique Teixeira de Sousa, médico, nutricionista e autarca cidadão de duas pátrias

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Introdução

Os baleeiros norte americanos que nos séculos XVIII e XIX se dedicavam, nas águas do Atlântico, à caça da baleia, recrutavam, para servir nos seus navios, muitos naturais das ilhas portuguesas da Macaronésia, na altura considerados os melhores marinheiros do Mundo.

Foi o que aconteceu com um cidadão madeirense, de nome Henrique Lúcio de Sousa. Os baleeiros escalavam muitas vezes a Brava para se reabastecerem, e Henrique Lúcio de Sousa tocou ali tantas vezes que a certa altura resolveu desembarcar e fixar residência na ilha. Casou com uma bravense, de nome Maria Pinto de Carvalho, e estabeleceu-se com um pequeno comércio. Fruto dessa união nasceu, a 25 de Dezembro de 1892, na Vila de Nova Sintra, João Lúcio de Sousa, que seria o pai de Henrique Teixeira de Sousa.

O avô de Henrique Teixeira de Sousa morreu alguns anos depois e João Lúcio ficou entregue aos cuidados de um tio, conhecido por Zurich, importante armador da ilha Brava, que o levou para casa, onde o educou juntamente com os seus quatro filhos.

Aos doze anos, completada a quarta classe, o pai de Henrique Teixeira de Sousa, tal como os primos, embarcou como moço de câmara num veleiro do tio, que fazia as ligações entre o Fogo e a Brava, a fim de aprender o ofício de navegar. Aos dezoito anos conseguiu a carta de mestre de cabotagem e passou a comandar uma das embarcações nas carreiras entre as ilhas. Dali passou para as viagens transatlânticas, na carreira da América. Naturalizado americano em 1926, obteve os galões de capitão de longo curso e adquiriu uma embarcação própria, que explorava e comandava. Passou a ser conhecido como o capitão John de Sousa.[1]

João Lúcio de Sousa casou-se com uma foguense de nome Laura Martins Teixeira e a 6 de Setembro de 1919, na Freguesia de S. Lourenço, concelho de S. Filipe, ilha do Fogo, viu a luz aquele que seria um dos mais ilustres médicos, nutricionistas, autarcas, e o maior romancista cabo-verdiano: Henrique Teixeira de Sousa.

A família de João Lúcio de Sousa estabelecera o seu domicílio em S. Filipe, aonde o pai regressava no intervalo das suas viagens. Vivia desafogadamente (embora tenha sofrido várias crises ao longo da vida, como aconteceu durante a segunda guerra mundial) e mandara até ali construir um sobrado, que ainda hoje existe[2].

A Henrique, a vocação literária apareceu-lhe desde a mais tenra idade. Na entrevista que em 12 de Janeiro de 2005 concedeu à jornalista Ana Sofia Fortes, Teixeira de Sousa relata que mesmo em criança tinha já um certo gosto pelas histórias.

Os estudos

À época, na ilha do Fogo, o ensino não ia além da escola primária. Mas os proventos das viagens marítimas permitiram que pai o pai de Henrique lhe custeasse estudos mais avançados. E assim, terminada a instrução primária, Henrique Teixeira de Sousa deslocou-se para S. Vicente a fim de prosseguir os seus estudos no Liceu Gil Eanes, que funcionava na cidade do Mindelo. Ali Teixeira de Sousa teve como professor de Português e Latim o célebre Baltazar Lopes[3], um dos fundadores da revista Claridade, que não descansava na busca e incentivação de talentos literários. Certo dia Baltazar Lopes da Silva organizou, entre os seus alunos, uma espécie de concurso literário, incentivando-os a concorrer. Cada um apresentou um trabalho. Teixeira de Sousa concorreu com um conto, Chuba qu’e nos governador, e venceu.

Alguns alunos e o próprio Professor, descortinando a sua vocação literária, tentaram encorajá-lo a prosseguir uma carreira ligada às letras. Mas Teixeira de Sousa desenganou-os sem qualquer hesitação. Respondeu sempre que desejava ser médico.

Em 1938, completado o curso do liceu, Henrique Teixeira de Sousa rumou pela primeira vez a Lisboa a fim de se licenciar em Medicina. Nos primeiros anos da sua estadia entre nós alojou-se num apartamento perto da Estrela, em casa de Nha Bíbia, uma senhora cabo-verdiana que alugava quartos. Só tinha contactos com patrícios. Mas um dia, de passeio pelo Rossio, encontrou-se com o Dr. Júlio Monteiro[4]. Este recomendou-lhe que mudasse de morada e que procurasse integrar-se melhor na vida da capital portuguesa, tirando maior proveito da sua estadia aqui. Teixeira de Sousa resolveu seguir o conselho. Deixou a casa de Nhá Bíbia e foi viver para um apartamento mais próximo da Faculdade de Medicina, com outros estudantes, que o introduziram nos grupos oposicionistas que pululavam no meio estudantil onde, segundo as suas próprias palavras, adquiriu todo «o back-ground» da «formação cívica e intelectual» que «muito (ficou) a dever aos vanguardistas portugueses da época»[5]E apercebeu-se de que os malefícios atribuídos a Portugal pela sua acção em África não se deviam ao povo português mas sim ao Governo do País.

Em Lisboa, Teixeira de Sousa não se ficou pelos contactos. Envolveu-se plenamente nas actividades oposicionistas levadas a cabo pelos seus companheiros, ao ponto de ter colaborado intensamente com o aparelho de imprensa do Partido Comunista, encarregando-se da distribuição e cobrança do «Avante» na sua Faculdade. No entanto, continua a escrever. Em 1942 integrou trabalhos seus na colectânea metropolitana Contos e Poemas. Em 1942 publica um conto denominado Noite de Guarda Cabeça. Consagraria a sua condição de ficcionista no último número da revista “Claridade”, saído em 1966, com a publicação do conto “A Família de Aniceto Brazão”.

Entretanto, no ano de 1945, licencia-se em Medicina. Foi o primeiro membro da sua família a completar um curso superior. Nesse dia houve festa rija na casa de família, na ilha do Fogo, abrilhantada pelo célebre Príncipe de Ximento[6] que compôs uma moda em sua honra[7]. Mas não estava ainda finda a formação inicial do jovem médico, que a havia de completar com os cursos de Medicina Tropical, no Instituto de Medicina Tropical e de Medicina Sanitária, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Só depois integraria o quadro do Serviço de Saúde do Ultramar e rumaria a Timor para a sua primeira comissão.

No Hospital de Timor

Durante a sua permanência em Timor, Teixeira de Sousa prestou serviço no hospital de Díli. Este hospital possuía apenas um outro médico, um cirurgião. Desempenhou também funções de professor na escola de enfermagem. Mas no hospital teve de ser pau para toda a obra pelo que quando chegou ao Fogo levava já alguma prática que lhe permitiu obter os melhores resultados. Apesar de não ser cirurgião teve de fazer uma craniotomia, uma operação ao crânio, num miúdo que caiu de um precipício e apareceu-com sintomas neurológicos muito sérios. Abriu-lhe a cabeça e tirou os pedacinhos de osso que estavam a comprimir o cérebro. Ele recuperou-se. Ficou com um buraco, mas passados muitos anos já era quase nada, porque com o crescimento os ossos foram fechando. E não ficou com qualquer sequela neurológica.

Mas o objectivo da sua vida era prestar serviço na sua terra, em Cabo Verde.

Delegado de Saúde no Fogo

No ano de 1949, com cerca de 30 anos, conseguiu a transferência para o Fogo como delegado de saúde. Este facto motivou reacções desfavoráveis por parte de alguns influentes brancos da terra, que não entendiam como este importante lugar de Delegado de Saúde poderia ser entregue a alguém, que apesar de branco, não passava do neto de um humilde comerciante da pequena localidade de S. Jorge.

Na vila de S. Filipe, capital da ilha, encontrou um pequeno mas bem concebido hospital. No entanto, parte do edifício estava ocupado por famintos, vítimas da última seca, populares obrigados a refugiar-se em S. Filipe por, dada a falta de chuvas, não disporem de alimentos nas suas terras. Obviamente havia necessidade de os alojar e alimentar mas isso poderia e deveria ser feito noutro edifício. Assim, o primeiro problema que Teixeira de Sousa teve necessidade de resolver consistiu na desocupação do hospital de S. Filipe, que não foi fácil, mas após porfiados esforços lá conseguiu arranjar outro local para onde foram transferidos os famintos.

Mas embora existindo o hospital faltava tudo o resto: equipamentos, medicamentos, móveis, roupas, e outros artigos. E não havia dinheiro para os comprar. Como o hospital não podia funcionar eficazmente sem esses produtos Teixeira de Sousa recorreu aos «americanos»[8] foguenses para os adquirir. Lançou um apelo, e pouco depois começaram a chegar dos Estados Unidos da América todos os equipamentos necessários para o funcionamento do hospital. E a seguir iniciou imediatamente os seus trabalhos.

A situação sanitária na ilha do Fogo

A população da ilha do Fogo estava sujeita a três flagelos que Teixeira de Sousa houve por bem debelar de imediato: o paludismo, a lepra, e a tuberculose. A estratégia utilizada por Teixeira de Sousa para o ataque a estas três enfermidades foi sempre a mesma, e consistia no seguinte:

  • Inventariar não apenas os casos em que a doença se manifestava mas também todos quantos estivessem em contacto com os doentes, e examiná-los, e tratá-los;
  • Isolar e tratar os doentes;
  • Providenciar cuidados profilácticos a quantos tivessem tido contactos com os doentes.

A fim de tratar os doentes que não podiam deslocar-se a S. Filipe, nos fins-de-semana Teixeira de Sousa percorria a ilha toda. Providenciava para que fossem transportados para S. Filipe quantos deviam ser internados no Hospital. Executava pessoalmente as pequenas cirurgias e bem assim todas as que revestiam caracter urgente, auxiliado pelo pessoal de enfermagem e ainda por pessoal auxiliar que ele próprio recrutou e formou. E isto incessantemente durante cinco anos.

Quando, cinco anos depois, foi transferido para S. Vicente, deixou na ilha do Fogo, além do hospital, uma maternidade e um laboratório de análises clínicas. No hospital existia um bloco operatório devidamente apetrechado onde se faziam todas as cirurgias de menor complexidade e as consideradas urgentes. Os principais flagelos estavam debelados ou controlados. Já ninguém morria por impossibilidade de se deslocar a S. Filipe. Graças a Teixeira de Sousa a população do Fogo via finalmente o princípio do fim de um abandono de séculos.

A acção que desenvolveu foi brilhante mas o inconformismo de Teixeira de Sousa teria necessariamente de lhe acarretar alguns amargos de boca, quer por parte das autoridades portuguesas do período dito “colonial”, quer por parte das novas autoridades do período imediato pós independência. Assim, uma sua fotografia, que havia sido colocada na Maternidade, em recordação do seu fundador, foi retirada do local. Mas alguns anos depois da independência, já depois da sua morte, ocorrida em Portugal e derivada de um estúpido acidente de viação, a justiça foi reposta e as novas autoridades cabo-verdianas reconheceram, finalmente a importância da actuação deste seu filho. O seu nome foi dado à Escola Secundária de S. Filipe e as suas cinzas transportadas para a ilha do Fogo e colocadas num cemitério da ilha, em mausoléu da autoria de João Lopes. A câmara Municipal organizou-lhe uma homenagem, presidida pelo próprio Primeiro-Ministro, na altura Pedro Pires, também natural da Ilha do Fogo.

Delegado de Saúde em S. Vicente

Terminada a sua comissão na ilha do Fogo, Teixeira de Sousa foi colocado em idênticas funções na ilha de S. Vicente, onde também exerceu clínica privada, com o brilhantismo de sempre.

Especialista de Nutrição

A certa altura da sua vida, Henrique Teixeira de Sousa, que por mais de uma vez tinha sido solicitado para representar Portugal em reuniões internacionais relacionadas com a nutrição nos territórios e países africanos, resolveu dedicar-se ao seu estudo. Na realidade a nutrição foi, sem qualquer dúvida, um dos principais problemas encontrados pelos povoadores do arquipélago de Cabo Verde, pois dificilmente se podiam imaginar terras mais hostis à criação e manutenção da espécie humana do que aquelas ilhas.

O interesse e a competência com que Teixeira de Sousa levava a cabo tudo aquilo que fazia, e em especial a sua preocupação com os problemas relacionados com a nutrição em Cabo Verde, tornou-se patente, e logo em Dezembro de 1955, foi nomeado Presidente da Comissão Provincial de Nutrição de Cabo Verde. Note-se que mesmo fora dos períodos de seca a alimentação da quase totalidade dos habitantes do arquipélago de Cabo Verde era extraordinariamente deficiente e encontrava-se na base do mau estado sanitário de muitos elementos da população. Em 1957, quando além de Presidente da Comissão Provincial de Nutrição desempenhava também o cargo de médico-adjunto da Missão Permanente de Estudo e Combate das Endemias de Cabo Verde, Teixeira de Sousa publicou, no Boletim oficial de Cabo Verde, um longo artigo, intitulado «Alimentação e Saúde nas Ilhas de Cabo Verde”, onde relata a situação existente e as carências que no momento se verificavam.

Nos anos de 1955 e 1956 resolveu retomar a condição de estudante, a fim de adquirir condições que lhe permitissem melhor colaborar na resolução deste importante problema. E tendo a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a FAO[9] (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) organizado um curso sobre a nutrição em África, Teixeira de Sousa candidatou-se e conseguiu frequentar o mesmo como bolseiro daquelas duas organizações.

O curso realizou-se em Marselha, seguindo-se um estágio em Paris, num hospital especialmente ligado aos problemas da investigação (estagiou no Hospital de Bichat[10] e no Instituto de Higyène daquela cidade).

Porém, Teixeira de Sousa não se limitou a estudar os problemas relacionados com a nutrição. Durante a sua estadia em França desenvolveu intensa actividade no estabelecimento de contactos não só com outros especialistas da matéria em estudo mas também com diversas personalidades da política e da cultura.

Foi introduzido no ambiente da Sorbonne e nos meios políticos e culturais relacionados com a negritude e o nacionalismo africano pelo célebre político e ensaísta angolano Mário Pinto de Andrade[11].

Entre as personalidades na altura contactadas por Teixeira de Sousa conta-se o célebre Aimé Césaire[12], justamente considerado, em conjunto com Senghor, como o grande ideólogo da Negritude.

Louvado pelas autoridades da Província

Teixeira de Sousa desenvolveu no cargo de Presidente da Comissão de nutrição de Cabo Verde uma acção julgada extremamente meritória, direi mesmo brilhante. Em 19 Julho de 1957 o Boletim Oficial de Cabo Verde n.º 25, da mesma data, inseria uma Portaria que o louvava «pela forma distinta e inteligente como vinha exercendo o cargo de Presidente da Comissão de Nutrição de Cabo Verde». Teixeira de Sousa havia ainda de receber mais dois louvores do Governo: o Despacho n.º 40 (Boletim Oficial n.º21, de 21 de Maio de 1960, louvava-o «pela forma eficiente e brilhante como colaborou na elaboração do Plano de Abastecimento de Cabo Verde na época da seca». E uma outra Portaria do Governo da Província, inserida no suplemento ao Boletim Oficial de Cabo Verde n.º 5, de 4 de Fevereiro de 1974, «pelos serviços prestados como nutricionista durante os anos da seca em curso».

Na verdade, no período mais crítico da seca que se iniciou em 1958 percorreu todas as ilhas em serviço de prospecção ao estado de nutrição das respectivas populações. Verificou que na ausência de grandes recursos capazes de substituir as falhas de produção agrícola, a assistência indirecta em tais períodos, não podia ser feita senão com trabalhos empregando vultuosa mão-de-obra e o mínimo indispensável de materiais de construção e maquinaria. Esses trabalhos constituíram essencialmente na abertura de estradas e caminhos, sendo os únicos que podiam tecer a rede de assistência indirecta imprescindível nos anos calamitosos. Com tais frentes de trabalho, abertas profusamente por todo o arquipélago, tendo sidos estabelecidos os níveis de consumo por ilha, concelho e freguesia, e assegurado o abastecimento por importação pronta e suficiente de Angola e de Portugal Continental, atingiu-se o termo do ciclo sem baixas nem perturbações de maior.

Em muitos séculos foi a primeira vez que a morte, essa grande ceifeira, não conseguiu aproveitar-se de uma seca em Cabo Verde. A população aumentou 25% nos anos sessenta. E Teixeira de Sousa pôde, orgulhosamente, escrever: «com resultados tão brilhantes em matéria de evolução demográfica, podemos afirmar que ultrapassámos já em Cabo Verde a fase de perder vidas nas temporadas de estiagem para entrarmos na fase de as preservar para glória da acção civilizadora de Portugal no Mundo».

Presidente da Câmara do Mindelo

A forma a todos os títulos brilhante como Teixeira de Sousa desempenhara as missões que previamente lhe haviam sido cometidas fez com que o seu nome surgisse como o de um dos possíveis candidatos à Presidência da Câmara Municipal do Mindelo. O Governador Silvino Silvério Marques[13] sondou-o nesse sentido.

Teixeira de Sousa fez saber a Silvino Silvério Marques estar disposto a aceitar a nomeação desde que lhe fossem garantidas certas condições.

A primeira condição consistiu em exigir que ficasse bem claro que ninguém poderia retirar da sua aceitação quaisquer ilações políticas. Na base desta encontrava-se apenas a obrigação do cumprimento de um mero dever cívico.

Exigia, por outro lado, que o acompanhassem na Câmara alguns elementos da sua estrita confiança, cuja colaboração considerava indispensável para o êxito da sua presidência. Também, tendo em conta a superação das necessidades mais urgentes da cidade do Mindelo, que ultrapassavam em muito as capacidades financeiras do Município, o Governo Central teria de garantir à Câmara o apoio financeiro necessário para as satisfazer. E não abdicava do exercício da sua profissão de médico, pelo que não deveriam ser postos entraves ao prosseguimento da sua clínica, mesmo depois da aceitação da nomeação para Presidente da Câmara de S. Vicente.

Todas as condições foram aceites e Teixeira de Sousa tomou posse no dia 2 de Julho de 1960, na Câmara Municipal do Mindelo, perante o Governador da Província. Elegeu como prioridades absolutas o abastecimento de água, energia eléctrica e esgotos (à época o Mindelo, já com mais de 25000 habitantes, não possuía rede de abastecimento de água ao domicílio, nem esgotos, e a electricidade só era fornecida durante algumas horas do dia). Como objectivos subsequentes mencionou a urbanização, o alojamento e a estética urbana. Mas avisou que todos os munícipes tinham de colaborar na sua realização. Abandonando a crítica estéril e bota-baixista era obrigação de cada um «arregaçar as mangas» e colaborar activamente na resolução dos problemas da cidade. E de seguida começou a trabalhar.

Teixeira de Sousa imediatamente constatou que a principal dificuldade que teve de vencer, e que superava de longe as carências financeiras, consistia na falta de quadros. Mais tarde haveria de afirmar que «sem a conveniente estruturação dos serviços que já existiam e a criação de departamentos até agora inexistentes, todos eles enquadrando pessoal preparado e à altura das respectivas responsabilidades, não podemos caminhar para a frente por mais dinheiro de que possamos dispor».[14]

E continuava: «Mindelo é a cidade mais populosa do arquipélago e por conseguinte a que necessita de um serviço de limpeza pública mais oneroso, de abastecimento de água e energia eléctrica mais complexo e caro, de uma fiscalização de obras particularmente mais trabalhosa, de provisão de víveres mais larga, de um trânsito de veículos mais disciplinado, de um serviço de incêndios de acordo com a área coberta, etc., etc.» Consequentemente, proclamou como primeira missão específica a de «dotar a Câmara Municipal de S. Vicente com uma organização que a habilite a enfrentar um programa de melhoramentos e obras de que Mindelo carece». Tarefa que considerou lenta, e que exigiria bom senso, persistência, coragem e a visão nítida do que se pretendia instituir.

O fornecimento de Energia Electrica

Foi em relação ao fornecimento de energia eléctrica que conseguiu, em 1961, a sua primeira façanha principal, fornecendo energia em contínuo, durante as vinte e quatro horas do dia. E mercê da introdução de importantes aperfeiçoamentos no equipamento, logrou reduzir as tarifas da energia eléctrica em 10%, isto sem prejuízo das receitas da Câmara, graças ao aumento do consumo.

A criação dos Serviços de Urbanização e Obras das Câmaras do Barlavento

Silvério Marques tinha sugerido que, para facilitar a resolução do problema da carência de técnicos, as Câmaras do Barlavento se unissem possibilitando a criação e um serviço que a todas pudesse servir. A sugestão do Governador não caiu em saco roto. Pouco mais de um ano depois, a 6 de Julho de 1962, seriam inaugurados os «Serviços Federativos de Urbanização e Obras do Barlavento», presididos por Henrique Teixeira de Sousa, na sua qualidade de Presidente da Câmara Municipal do Mindelo. A partir de aí S. Vicente e as restantes autarquias do Barlavento passariam a dispor de serviços com capacidade para desempenhar as importantes funções que lhe caberiam em qualquer país minimamente desenvolvido. A construção deixou de se fazer ao Deus dará, que o mesmo é dizer, ao sabor da ignorância e dos interesses de quantos a empreendiam, para passar a obedecer a padrões de qualidade, estética e segurança susceptíveis de melhorar substancialmente a qualidade de vida dos munícipes. E o mesmo aconteceu com as obras municipais, cuja melhoria constituiu igualmente causa de um sensível progresso no bem-estar dos mindelenses.

Os esgotos

Na principal cidade de Cabo Verde (como nas outras) não havia esgotos, e por consequência as casas também não possuíam instalações sanitárias. Normalmente, nas habitações mais ricas, existia um cubículo ao fundo do quintal dedicado à satisfação das necessidades fisiológicas. Os resíduos eram lançados para uma lata colocada por baixo dos assentos, que uma serviçal (normalmente era uma mulher) retirava durante a noite para ir despejar na praia ou em algum terreno fora da povoação (como o próprio Teixeira de Sousa descreve no seu romance Na Ribeira de Deus). O povo lavava-se nos ribeiros e aliviava-se no campo ou nas praias. Aliás, contrariamente ao que muitos pensam, as classes mais humildes eram também as mais cuidadas na higiene, até porque o reduzido vestuário que utilizavam era muito mais adequados à vida nas regiões tropicais do que as pesadas vestimentas europeias, que os brancos e as brancas persistiam em utilizar, mesmo nos trópicos.

Teixeira de Sousa, colocou, ainda sobre o sistema antigo, muitas e muitas centenas de metros de conduta de alvenaria e grés. Estas condutas foram lançadas nas artérias mais importantes, o que permitiu a construção, por parte dos munícipes, de numerosas instalações sanitárias, isto é de fossas sépticas ligadas ao colector da via pública. Diminuiu consideravelmente o espectáculo da passagem das latas de despejo à cabeça das mulheres, pelas ruas da cidade. Foi outro enorme serviço que ficamos a dever a Teixeira de Sousa, pois o saneamento básico e o tratamento da água e dos esgotos são práticas que condicionam a saúde e o bem-estar da população.

É claro que uma solução completamente eficaz para este problema só poderia ser lograda em conjunto com a resolução do problema da água. Mesmo assim a acção de Teixeira de Sousa permitiu pôr em prática uma solução intermédia que suavizou, na medida do que era possível, os incómodos e outros inconvenientes da solução tradicional.

As Obras Municipais

A gestão das obras municipais constitui uma importante responsabilidade da administração autárquica. As Câmaras são obrigadas a empreender constantemente um conjunto de obras, quer para construir, manter e melhorar as suas próprias instalações, quer em benefício do território pelo qual respondem.

Imediatamente a seguir à posse, Teixeira de Sousa notou imediatamente uma série de lacunas e de deficiências na organização dos serviços, alguns dos quais eram mesmo inexistentes. Tornava-se assim necessário eliminar esses defeitos para que os serviços pudessem actuar com a eficiência requerida.

A qualidade da construção deixava muito a desejar, tanto nas obras que se faziam por iniciativa da própria Câmara como nas de iniciativa particular. Por isso, uma das primeiras medidas de Teixeira de Sousa consistiu em criar um Gabinete de Técnico de Obras (GTO), com um quadro de pessoal, instalações e verbas próprias, a fim de impedir as improvisações e os amadorismos de toda a ordem que imperavam em matéria de construção civil. Leis já havia mas faltava a fiscalização. Claro está que a imposição da disciplina não deixou de lhe acarretar considerável antipatia por parte de quantos estavam habituados a fazer tudo o que lhes desse na gana. Teixeira de Sousa, porém, não era pessoa que desanimasse ou se atemorizasse perante as dificuldades. Sem hesitar, prosseguiu na orientação que considerava mais correcta e a breve trecho a imagem do Mindelo começou a melhorar.

A Arborização e a Jardinagem

Apesar da escassez de água, da indisciplina da população, dos estragos causados pelos animais, (não raro se viam cabras a pastar nos jardins da cidade) etc., Teixeira de Sousa mandou plantar inúmeras árvores que conseguiram medrar. Esta actividade foi favorecida pelas melhorias introduzidas por Teixeira de Sousa nos serviços de abastecimento de água, designadamente fornecendo a população com água de mesa através de numerosos fontanários espalhados pela cidade.

As Oficinas Municipais

Os resultados conseguidos por Teixeira de Sousa na gestão da cidade e da própria ilha só foram possíveis com a criação de um conjunto de serviços que já existiam mas que foi necessário melhorar consideravelmente.

Assim, foi montada uma oficina mecânica dotada de instalações, de equipamentos e de pessoal, onde passaram a fazer-se as numerosas reparações de que os equipamentos da Câmara necessitavam. Esta passou também a dar apoio aos serviços de abastecimento de água, ao Gabinete Técnico de Obras, aos veículos municipais e ainda a muitos outros equipamentos. Até os instrumentos da banda municipal passaram a ser ali reparados.

Teixeira de Sousa montou também uma oficina de carpintaria.

A Câmara passou assim a dispor de uma considerável auto-suficiência em matéria de conservação e reparação de equipamentos, veículos e instalações, facto do maior valor pela escassez de oficinas particulares capazes de prestar à autarquia estes indispensáveis serviços.

A Limpeza

Também não foi descurada a limpeza da cidade. Foi adquirido um carro de remoção do lixo de maior capacidade e consideravelmente melhorado o serviço de recolha dos subúrbios.

Os Bombeiros

A câmara Municipal do Mindelo não possuía bombeiros municipais. Teixeira de Sousa empenhou-se na criação do corpo de bombeiros municipais de que o Mindelo carecia, dado que o próprio desenvolvimento da urbe e das actividades ali realizadas aumentava consideravelmente os riscos de incêndios ou de outros acidentes graves.

Não era fácil organizar este serviço. Era necessário recrutar pessoal, instruí-lo, e dotá-lo de instalações, de veículos e de equipamentos dispendiosos. No entanto, Teixeira de Sousa conseguiu motivar os seus colaboradores e mau grado as dificuldades inerentes, designadamente financeiras, o corpo de bombeiros apareceu. Um elemento viajou para Lisboa onde estagiou para adquirir conhecimentos que lhe permitissem levar depois a cabo a formação dos bombeiros mindelenses. O pronto-socorro foi construído na oficina mecânica municipal, a partir de um velho camião, já destinado a sucata. Teixeira de Sousa pouco mais do que isto foi capaz de fazer, neste campo. Mas deixou aos seus sucessores os alicerces e as traves mestras dos serviços, de maneira que, continuando os seus esforços, desenvolvendo e aperfeiçoando os meios existentes, pudessem, em futuro que se não desejava longínquo, vir a dotar o Mindelo de um serviço capaz de arcar com os riscos que o desenvolvimento não deixaria de acarretar. Na verdade, o esforçado médico foguense, antecipou muitos dos projectos que os Governos cabo-verdianos viriam a implementar, depois da independência e que são hoje, felizmente, uma realidade.

A Banda e a Biblioteca Municipais

A banda, agrupamento da maior importância para o êxito das festas populares mas também para o fomento do gosto musical das populações, encontrava-se, no início do mandato de Teixeira de Sousa, em estado de completa dissolução. Teixeira de Sousa promoveu:

  • O reingresso dos antigos componentes e o aumento das respectivas gratificações;
  • A aquisição de novos instrumentos;
  • O aumento do número de figuras (de 18 para 25);
  • A admissão de dois sargentos músicos a fim de melhorar o nível técnico dos componentes do agrupamento.

Depois de reorganizada, a banda realizou uma série de concertos extraordinários, no átrio do liceu e no coreto da Praça Nova, por eles se tendo verificado que ela não servia apenas para executar mornas, coladeiras e outras músicas populares mas podia também interpretar outros trechos, para deleite e desenvolvimento cultural dos munícipes do Mindelo.

A biblioteca municipal foi contemplada com melhorias consubstanciadas no aumento dos armários e na mais eficiente iluminação da sala. O acervo foi aumentado com mais quatrocentos volumes.

A Disciplina da construção no Mindelo

Dissemos já que antes da criação dos serviços de urbanização e obras, o Mindelo tinha-se apresentava-se como um emaranhado de edifícios, ruelas e travessas, e a falta de disciplina urbanística e arquitectónica causara erros de correcção quase impossível, pois importaria em cifras astronómicas, que a Câmara não possuía nem viria a possuir. Também neste campo, Teixeira de Sousa levou a cabo uma «melhor apreciação dos projectos de construção, uma melhor fiscalização dos trabalhos em curso, e uma melhor ocupação dos terrenos livres»[15]. Tudo isto através da organização que criara para esse efeito a qual, no seu entender, tinha ainda de ser aperfeiçoada. Mas constatou, que o público vinha adquirindo outros hábitos ao mesmo tempo que a Câmara acompanhando mais de perto toda a actividade naquele sector, conseguiu evitar muitas das mazelas urbanas que por largos anos iriam constituir uma das grandes preocupações do Município mindelense»[16]. Criou vários serviços de fiscalização e iniciou um serviço de policiamento municipal para garantir que as leis eram cumpridas. Para o efeito requisitou à Polícia de Segurança Pública dois agentes, pagos pela Câmara e a trabalhar sob as ordens directas do Presidente.

A construção de Habitações para os Pobres

Os problemas relacionados com a habitação das classes pobres (que constituíam a esmagadora maioria da população) mereceram igualmente a atenção do Presidente da Câmara Municipal. Para os resolver, a Câmara criou projectos de casas económicas que fornecia ao preço de 100$00 cada, orientado assim os pobres na construção das suas habitações.

Melhoramentos introduzidos na Cidade e na Ilha

Durante os cinco anos do seu mandato, Teixeira de Sousa introduziu na cidade e na ilha de S. Vicente vários melhoramentos. O Mindelo foi brindado com a beneficiação da Praça do Liceu, do Largo Vasco da Gama e do Largo da Igreja. As praias da Mateota e da Baía das Gatas foram também objecto de importantes obras que beneficiaram grandemente a respectiva utilização. Foram calcetadas mais de uma dezena de ruas. Outras foram reparadas. E alguns bairros que constituíam zonas horrorosas da cidade transformaram-se em recantos aprazíveis, designadamente «pela sua localização altaneira e enquadramento urbanístico»[17].

Foram também efectuadas várias obras de conservação e de restauração no edifício dos Paços do Conselho, no tribunal da Comarca, em vários bairros, no Estádio Municipal (onde foi construído um balneário para os desportistas), no mercado agrícola, no cemitério e nas garagens municipais.

Precursor do Turismo

Henrique Teixeira de Sousa sonhava com o dia que havia de chegar, em que as dádivas da natureza por ele descritas como «as montanhas silenciosas e nuas e a crosta de lava que as cobre, o mar azul e viril avistado até ao horizonte, o sol magnífico que arde e purifica, o céu sempre límpido e longínquo», se transformariam em riquezas úteis para todos os cabo-verdianos. E esse sonho, que é hoje uma realidade, começou também a concretizar-se no seu consulado. A este respeito, escreveu:[18]

«Se me permitem, quero referir-me ainda a outro sector que também sofreu certo arranque a partir de Fevereiro de 1961. Refiro-me ao sector turístico. Cerca de uma dezena de barcos afretados por Empresas Turísticas estrangeiras, visitaram S. Vicente até à data, tendo trazido milhares de turistas a conhecer a excelência do nosso clima e a estimular-nos para o desencadeamento de melhoramentos adequados à exploração de semelhante ramo comercial e industrial. A Câmara da minha presidência não foi a entidade que promoveu esse movimento turístico. Tais louros cabem honrosamente à Companhia Millers & Corys que não se tem poupado a esforços para atrair ao Porto Grande os cruzeiros de férias organizados por diversas empresas estrangeiras. Mas é com certo orgulho e satisfação que registo neste momento a colaboração da Câmara e da Comissão Municipal de Turismo, no sentido de que tais iniciativas houvessem resultado satisfatoriamente, a ponto de já se ter dado início à construção dum hotel nesta cidade, graças às facilidades concedidas pelo Governo e pela Câmara Municipal.»

O Abastecimento de Água

Mas não falei ainda do problema da água, desde sempre principal problema do arquipélago, o que, pela sua importância, farei a seguir, e para terminar.

A água é o factor que maior influência tem na idiossincrasia do povo cabo-verdiano. Inserido num ambiente caracterizado pela irregularidade das chuvas, das quais depende a produção dos alimentos necessários para a sobrevivência física da população, em Cabo Verde tudo gira em volta da questão de saber se na estação própria as chuvas cairão na quantidade e qualidade necessárias para proporcionar uma boa produção agrícola. Tradicionalmente, se no tempo próprio as chuvas aparecem na quantidade e na qualidade necessárias a vida está assegurada no território. Mas se a chuva for torrencial, o que também é frequente, as consequências serão dramáticas. As águas arrastarão para o mar parte importante da pouca terra arável que ainda cobre certas partes do território, e as ribeiras, no seu percurso em direcção ao oceano, destruirão tudo na sua passagem. Por isso se diz em Cabo Verde que se a chuva não cai, morre-se de fome, e se cai morre-se afogado. Assim, não admira que Teixeira de Sousa considerasse a falta de água como o principal problema do Mindelo.

A partir de 1964 Teixeira de Sousa começou a procurar uma solução para este problema. Tentou criar uma empresa mista para organizar e explorar a dessalinização da água do mar, à semelhança do que se fazia já nas ilhas Canárias, mas não encontrou entidades interessadas em levar a cabo um empreendimento desta natureza.

No ano de 1965 Teixeira de Sousa considerava o problema do abastecimento de água, que se encontrava baseado em poços dispersos pela ilha, como o problema n.º 1 do Mindelo. A população da cidade vinha aumentando a um ritmo próximo dos 3% ao ano, situando-se na altura em cerca de 30000 habitantes. O consumo de água era cada vez maior. E o nível freático dos poços baixava consideravelmente nos períodos de seca.

Por ironia do destino, a cerca de uma dezena de milhas de distância, na ilha de S. Antão, existia em abundância água de finíssima qualidade cuja maior parte era desperdiçada, pois todo o ano corria para o mar. O aproveitamento que dela se fazia localmente apenas aproveitava quantidades exíguas que em quase nada afectavam o débito dos mananciais existentes. No entanto, o custo do transporte desta água para S. Vicente era proibitivo, tornando-se impossível recorrer a ela para o abastecimento da cidade. Mesmo assim era com essa água, transportada em navios tanques da ilha de S. Antão para a ilha de S. Vicente, que se fazia o abastecimento dos navios, saindo a água ao preço de esc. 30$00 por metro cúbico. A única solução praticável para o abastecimento da população consistia, assim, na dessalinização da água do mar.

Dado o exposto Teixeira de Sousa, após um estudo e orçamento pormenorizados, solicitou do Governo da província autorização para contrair um empréstimo de 27000 contos, a fim de construir as instalações e iniciar a dessalinização da água do mar para abastecer a cidade do Mindelo. Mas as demoras burocráticas não permitiram que essa obra se efectuasse ainda durante o seu mandato com Presidente da Câmara. Só no mandato seguinte se começou a fazer a dessalinização de água do mar, com o arranque de uma unidade que debitava 2000 metros cúbicos diários de água dessalinizada. Mas todas as diligências prévias relativas ao estudo, aprovação, planeamento, financiamento e construção da primeira unidade de dessalinização de água do mar no Mindelo foram feitas por Teixeira de Sousa.

No dia 22 de Maio de 2018 a empresa Electra SA, hoje concessionária da distribuição de água em quase todas as ilhas de Cabo Verde, organizou, na Cidade da Praia, um simpósio para assinalar o dia mundial da água e os 50 anos da dessalinização da água do marno arquipélago. Esta iniciativa contou com a participação de técnicos capacitados com experiência e domínio nas áreas de produção, gestão dos recursos hídricos e saneamento, e visou, segundo os promotores, promover o diálogo e a troca de informações sobre a problemática da água em Cabo Verde e a sensibilização para o seu uso eficiente.

Nessa reunião, Henrique Teixeira de Sousa não foi esquecido. Os organizadores recordaram o facto de que há 50 anos, o regime hidrológico de Cabo Verde não era capaz de prover todos os centros urbanos com água potável natural, nem de assegurar disponibilidades de água com regularidade que permitisse o funcionamento das diversas actividades no país. Os organizadores lembraram o facto de que Teixeira de Sousa, no ano de 1965, quando era Presidente da Câmara Municipal de S. Vicente, «deliberou solicitar ao Governo da Província uma autorização para contrair um empréstimo de 27000 contos, visando a aquisição de uma unidade de destilação de água de 2000 a 3000 metros cúbicos por dia (ou 2000000 a 3000000 de litros). Três anos depois, em Janeiro de 1968 o Governo português autorizou o Governo de Cabo Verde a celebrar, com a sociedade espanhola Babcock & Wilcox um contrato para a construção e fornecimento de uma instalação de dessalinização de água do mar para a cidade do Mindelo. Após a autorização e a celebração do contrato acima referido iniciou-se a construção das instalações de dessalinização da água e do reservatório. Teixeira de Sousa já não era o Presidente da Câmara do Mindelo mas nem por isso a sua acção se deve considerar menos determinante para a resolução do importante problema do abastecimento de água à cidade do Mindelo e à ilha de S. Vicente.

Hoje, 65% das necessidades do Mindelo em água provêm da dessalinização da água do mar, da qual Teixeira de Sousa foi, sem qualquer dúvida, o pioneiro. E as ilhas de Santiago, Boavista e Sal já são igualmente abastecidas com água do mar dessalinizada.

Segundo notícia publicada pela revista África 21, a 12 de Dezembro do ano transacto (2018) foram inauguradas em Cabo Verde mais duas centrais de dessalinização de água do mar, cada uma das quais com capacidade para a produção de 10000 metros cúbicos por dia: uma na ilha de S. Vicente e outra na ilha do Sal. Estas centrais foram financiadas pela Agência Francesa de Desenvolvimento, no âmbito de um projecto orçado em mais de dois biliões e 400 milhões de escudos cabo-verdianos (cerca de 21,8 milhões de euros). E a respectiva entrada em funcionamento vai permitir uma redução em 50 porcento no consumo de energia para a produção de água.

Por outro lado, a empresa pública de produção de electricidade e água (Electra) vai reforçar a capacidade de produção de água dessalinizada nas duas ilhas, tanto para o consumo doméstico, como para outros sectores económicos. Segundo garantiu o Presidente do Conselho de Administração da Electra, Alcindo Mota, “este projecto está em clara sintonia com o programa do Governo, no qual estão definidas as prioridades estratégicas nesta matéria. Por sua vez, o Primeiro-ministro cabo-verdiano, Dr. Ulisses Correia e Silva, enalteceu o facto de, com os novos equipamentos, a Electra passar a produzir água 50 por cento menos onerosa em consumo de energia, esperando-se que tal tenha reflexo na redução das tarifas pagas pelos utentes. Ulisses Correia e Silva confirmou também que este projecto, implementado pela Electra, está “alinhado” com as políticas que o seu Governo tem estado a desenvolver, de associar a água às energias renováveis, que o mesmo é dizer, “a política energética e a água andam juntas”. “Vamos investir forte não só no investimento público como na atracção do investimento privado em condições favoráveis, quer fiscais, aduaneiras e financeiras, para um amplo investimento neste sector”, considerou.

Mas o melhor vinha a seguir:

“Estamos a apostar decididamente em parcerias público/privadas para o uso da água dessalinizada na agricultura, com a utilização quer da água do mar, quer a reutilização de águas residuais”, acrescentou o chefe do Governo cabo-verdiano, garantindo ainda que o orçamento do Estado para 2019 contempla incentivos neste domínio. Daí que a solução, dentro da estratégia de utilização da água para irrigação e para a agricultura, “tem que ter fraca dependência da chuva”.

Ou seja mercê da dessalinização da água do mar, para o início da qual a acção de Teixeira de Sousa foi determinante, aproxima-se o dia em que Cabo Verde deixará de estar dependente da água que cair do céu. Se chover será bom, mas se não chover haverá cachupa na mesma…

Regresso ao Quadro de Saúde do Ultramar

Finda a comissão com Presidente da Câmara Municipal de S. Vicente, Teixeira de Sousa reintegrou o Quadro do Serviço de Saúde do Ultramar, sendo colocado no Hospital de Mindelo, ao mesmo tempo que continuava o exercício da sua clínica privada, que nunca abandonou. Só a morte o fez abandonar o exercício da medicina.

Em 1973 foi designado adjunto do Chefe da Repartição Distrital de Saúde e Assistência do Barlavento e Director do Hospital de S. Vicente.

 E em 1976, com a extinção do Quadro do Serviço de Saúde do Ultramar, aceitou a reforma e mudou-se para Portugal, onde escreveu e publicou a maior parte dos seus romances. Durante a sua vida profissional escreveu um sem número de obras de caracter científico, sobre antropologia, nutrição e doenças tropicais.

Em Portugal

Viveu em Portugal durante mais de trinta anos, sem nunca esquecer a sua terra natal, que impregna todas as suas obras. Até que um estúpido acidente de viação, ocorrido em Algés no dia 3 de Março de 2006 o roubou de vez ao nosso convívio.

O Reconhecimento da Obra de Teixeira de Sousa pelos seus Conterrâneos

Em 2005, pouco antes de morrer, alguém lhe perguntou se estava contente com o reconhecimento obtido pelos seus trabalhos. Respondeu desta forma:

«Sim, do ponto de vista literário eu não posso dizer que estou descontente a respeito do reconhecimento que todos os meus conterrâneos me têm dedicado a mim. De tal maneira que hoje sou muito mais conhecido como escritor do que como médico, sobretudo as novas gerações que se esqueceram completamente que sou médico. Hoje, quando venho a Cabo Verde apareço aqui como escritor. A não ser as pessoas mais idosas, que foram meus doentes e se achegam a mim para cumprimentar-me como seu antigo médico. Há dois anos fui homenageado pela Associação de Escritores de Cabo Verde, juntamente com Osvaldo Osório e Luís Romano, com todo o direito, diga-se. Lembro-me perfeitamente de ter tomado a palavra no fim da cerimónia: “Pois, queiram saber que Teixeira de Sousa, o médico, anda com muitos ciúmes do Teixeira de Sousa, o escritor” (risos)».

Conclusões

Os ciúmes de Teixeira de Sousa são legítimos. Por enorme que seja o talento de Henrique Teixeira de Sousa como escritor, nada pode empanar a sua actividade como médico, nutricionista ou autarca. No centenário do seu nascimento, este artigo foi escrito para que tal não aconteça.

Agosto de 2019

M. Vieira Pinto


[1] Este é um aspecto particularmente importante porque não fossem os recursos que a profissão do pai lhe proporcionou, provavelmente não estaríamos hoje aqui a homenagear Henrique Teixeira de Sousa.

[2] Recentemente a Câmara Municipal de S. Filipe remodelou a praça onde ficava a casa, que ficou a chamar-se Praça Henrique Teixeira de Sousa. E em frente à casa foi edificado um monumento de homenagem ao escritor, em forma de livro aberto, no qual figuram os títulos de todas as suas obras literárias.

[3] Baltazar Lopes da Silva (1907-1989). Notável professor, escritor, poeta e linguista cabo-verdiano. Foi um dos fundadores da célebre revista “Claridade” e autor do não menos célebre romance Chiquinho. Licenciado em Direito e em Letras foi convidado para professor da Universidade de Lisboa, cargo que não chegou a exercer por motivos políticos.

[4] Nascido em Santiago, licenciado em Direito pela Universidade Portuguesa, Júlio Monteiro ocupou vários cargos importantes no Ultramar Português, tendo sido Governador do Distrito de Malange, em Angola.

[5] Laban, Michel, Encontro com Escritores-Cabo Verde 1º volume, Fundação Eugénio de Almeida, Porto, 1992, p. 185

[6] Negro foguense, na sua juventude relacionado com um assalto a uma casa comercial, o que lhe valeu uma condenação de 4 anos de degrado em Angola. Ali aprendeu a tocar gaita e no seu regresso tornou-se célebre como músico e intérprete de modas por meio das quais criticava os costumes e as injustiças da sua terra. Faleceu por volta dos anos sessenta do século passado.

[7] Entrevista concedida por Teixeira de Sousa a Gláucia Nogueira em 25 de Maio de 1999.

[8] Os «Americanos» são os cabo-verdianos emigrados na América.

[9] Em Inglês «Food, and Agriculture Organization».

[10] Integrado no grupo dos hospitais universitários de Norte de Paris e do Vale do Sena, é uma instituição reputada em matéria de investigação sanitária e de saúde pública.

[11] Mário Coelho Pinto de Andrade (1928-1990). Depois da instrução primária e do ensino secundário, feitos em Luanda, seguiu para Lisboa a fim de cursar a Faculdade de Letras da Universidade. Em 1951 criou, juntamente com outros intelectuais africanos como Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Francisco José Tenreiro, o Centro de Estudos Africanos. Em 1954 exilou-se em Paris onde conheceu Nelson Mandela, Leopoldo Sedar Senghor e outras personalidades. Tornou-se depois activista político, tendo sido Presidente e Secretário-Geral do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). É considerado um dos mais importantes ensaístas angolanos e foi o primeiro a estudar, do ponto de vista estético e doutrinário, a poesia africana de expressão portuguesa.

[12] Aimé Fernand David Césaire (1913-2008). Negro, nascido na Martinica, para além da sua actividade no domínio da cultura desenvolveu, durante quase sessenta anos, uma carreira política como deputado do seu círculo natal e “Maire” de Fort de France.

[13] Silvino Silvério Marques (1918-2013).Governador de Cabo Verde de 1958 a 1962. Talvez um dos melhores que passaram pelo arquipélago.

[14] Id., id.

[15] Id. Id.[15]

[16] Id., id.

[17] Id., id.

[18] Ps 120 e 121 da obra já por várias vezes citada.