Lembrando o Doutor Francisco Frederico Hopffer

Lembrando o Doutor Francisco Frederico Hopffer

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Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Caros Colegas de Painel,

Bom dia a todos.

À memória de meu pai, Henrique Lubrano de Santa Rita Vieira, profundo conhecedor da História de Cabo Verde e dos seus Heróis.

Permitam-me começar por agradecer à Organização deste encontro aqui na Associação Caboverdeana, na pessoa do Dr. José Luís Hopffer Almada, a quem desejo sucesso na evolução desta iniciativa que em boa hora pôs em marcha.

Aceitei o desafio, porventura ingenuamente, de lhes falar de um Homem fascinante, talvez o maior da medicina, que até hoje, passou por Cabo Verde. Já era tarde quando dei pela ousadia e por isso lhes peço clemência no veredicto e que as faltas que ocorram me sejam relevadas.

Diz quem o conheceu, que além de excelente médico, tinha a palavra fácil e um léxico riquíssimo que lhe permitiam transmitir beleza e convicção sempre que discursava. Fazia jus à ideia de que o saber é o único consumível que se pode gastar sem restrições!

Procurarei enquadrar toda a sua actividade numa época em que ainda se acreditava em miasmas como causadores das piores doenças e em sangrias, beberagens diversas, e massagens, como terapêuticas, embora já não se acreditasse que as doenças eram castigo de Deus e que a cura passava, por exemplo, por benzeduras, com ou sem água benta, ou com recurso a relíquias de santos.

A salubridade das povoações andava ao Deus dará, a alfabetização era quase nula e a higiene nas casas particulares deixava muito a desejar. Era o tempo das calhandreiras, dos dejectos despejados “rocha abaixo” sem qualquer critério, quando e onde calhava, ou dos espertos de ocasião que, para não terem tanto trabalho ou não terem despesa, faziam os despejos à socapa nos pátios dos vizinhos.

Era também um tempo em que os animais viviam nos pátios das habitações particulares e as condições de limpeza muito difíceis porque não era possível ter água no domicílio nas quantidades adequadas.

Os tectos eram de palha, muitas vezes apodrecidos porque não eram mudados depois das chuvas, e as ruas, de terra, facilmente se transformavam em charcos de águas pútridas. A seguir vinham as febres a que também se chamava carneiradas.

Todos estes aspectos criavam dificuldades graves de saúde pública porque, sabemos hoje, a falta de higiene e salubridade são caminho seguro para doenças, que então se acreditava de origem miasmática, e que, quando chegavam, varriam tudo e poucos ficavam para contar.

Tudo isto, num ambiente de secas mais ou menos prolongadas e de um estado de subnutrição, fome e miséria, com os efeitos desastrosos que todos conhecemos.

Cabo Verde era considerado destino de muitos criminosos condenados ao degredo, tais eram as condições inóspitas do Arquipélago. A inclemência era tal, que nem os representantes de Deus escapavam!

A vida dos médicos era particularmente difícil, não só pelo que ficou dito, mas ainda porque eram muito escassos, não chegando a haver um por cada ilha, a que se tinha de juntar as cinco Praças da Guiné; por outro lado, os salários eram muito baixos e tinham de andar constantemente de um lado para o outro, de acordo com as circunstâncias. Alguém escreveu: “atirado, por escala, de delegacia em delegacia, com um material antiquado, na monotonia e na míngua de casos clínicos, os seus conhecimentos sofriam um retrocesso inevitável, agravado com a dolorosa consciência dessa regressão”.

Por alguma razão, no tempo do Dr. Hopffer, a reforma era aos quinze anos de serviço e depois passou para os doze, e cinquenta e cinco de idade. A duração média de vida em Cabo Verde, na primeira metade do século XIX andava pelos quarenta anos.

As epidemias devastavam sem contemplações, numas ilhas mais do que noutras e, sabendo que o soro fisiológico só apareceu em 1882 e os antibióticos, muito mais tarde, não é difícil imaginar os dramas que se viviam nessas ocasiões.

Não havendo médicos, recorria-se aos curandeiros e às mesinhas e ao “Google” desse tempo, que eram o “Lunário Perpétuo”, a “Prática de Barbeiros”, a “Atalaia da Vida”, entre outros.

Estes aspectos nefastos começaram a mudar em meados do século XIX, à medida que se foi avançando nos conhecimentos e se foram melhorando as condições.

Como se tudo isto não bastasse, acrescia a total falta de autonomia financeira do Governo Local que, para as mais modestas despesas, carecia de autorização do Poder Central.


Família

Esta conjuntura, insalubridade extrema e a paralisante falta de recursos e de autonomia local, ajuda a demonstrar a fibra e grandeza deste homem que nasceu em Cabo Verde, na Vila da Praia e cuja família era oriunda de Uffenhein, na Alemanha, onde um dos seus ancestrais, João Frederico Erasmo de Hopffer, recebeu do Imperador da Áustria, José II, o diploma de barão de Hopffer.

O pai, João José António Frederico d’Hopffer, nasceu no sítio da Figueira Branca, em S. Domingos (Ilha de Santiago); foi um distinto advogado em Cabo Verde e Guiné, e “evidenciou-se no julgamento dos implicados na tentativa de revolta dos escravos que se reuniram na propriedade de Montagarro”.

Faleceu no mar, arrastado por uma onda, a 20 de Abril de 1846. Era Delegado da Coroa e Cavaleiro da Ordem Militar de Cristo.

A mãe, Maria de Santa Frederico, descendia de uma família da Córsega e era uma mulher enérgica e caritativa, sendo conhecida por “a Santa”, devido a estas qualidades.

Francisco Frederico Hopffer nasceu a 28 de Agosto de 1828, na rua de Lencastre, próximo do actual Cinema da Cidade da Praia, numa casa que já não existe. Aos 12 anos, obteve uma bolsa para estudar em Portugal, a partir da Instrução Primária.

Casou aos 38 anos (1866) com Maria Antónia Bonini Tavares, de vinte e um, filha de um general ilustre, José António Tavares e de Gertrudes Magna Tavares. É descrita como uma senhora alta, elegante e de “formosura não vulgar”. Do casamento nasceram cinco filhos: Ernestina, Clementina, Frederico, Adelaide e Beatriz, que deram ao Dr. Hopffer um grande número de netos.

Faleceu em Lisboa, a 5/12/1919, aos 91 anos e foi sepultado no dia seguinte, no Cemitério Oriental, hoje Cemitério do Alto de S. João. Repousa no jazigo por ele adquirido em 1903 e de que foi fundador, com o nº 3407, localizado ao fundo da Rua 27. É o jazigo do Dr. Francisco Frederico Hopffer e da família de acordo com o que se lê no frontispício, por cima da porta gradeada, na qual estava preso um ramo de flores de aspecto recente.


Actividade Escolar

Apesar de não ser novidade para ninguém, permitam-me sublinhar que Cabo Verde sempre teve carestia de médicos, mas nesse tempo, não muito antes do Dr. Hopffer nascer, havia um hospital em Santiago com um cirurgião apenas, e ainda, um cirurgião na Boa Vista e um médico em S. Nicolau, ambos dedicados à clínica privada. A restante província não tinha hospitais, nem boticas, nem médicos.

Face a esta falta de médicos, a partir de 1833 e até 1857, foram enviados para estudar Medicina em Portugal, treze rapazes, entre os quais o jovem Francisco. Os bolseiros que saíam para tirar o curso de cirurgia em Portugal, tinham depois a “obrigação” de regressar a Cabo Verde, para exercer a sua profissão. Porém, os resultados foram desanimadores.

Dos treze rapazes, seis terão feito a instrução primária, mas desconhece-se o que aconteceu depois; três fizeram a instrução primária e voltaram para Cabo Verde; três fizeram o seminário em Santarém, mas também se desconhece qual o destino deles; finalmente, um fez a instrução primária e o curso médico-cirúrgico e regressou a Cabo Verde: Dr. Francisco Frederico Hopffer.

Além de estudar as cadeiras do Curso de Medicina, foi sempre dedicado às letras e o seu espírito rebelde levou-o a aderir à Revolução de Maria da Fonte, na Primavera de 1846. Foi nesta fase que conheceu e se tornou amigo de Bulhão Pato.

Obteve o diploma do Curso Médico-Cirúrgico, onde consta que no acto grande foi aprovado com louvor, a 7 de Junho de 1852, e doutorou-se na Académie royal de Medicine de Belgique, em Bruxelas “avec distinction”. Foi contemporâneo do médico brasileiro, licenciado em Coimbra, Pedro Francisco da Costa Alvarenga que viria, mais tarde, a escrever a biografia do Dr. Hopffer e a notabilizar-se no estudo da insuficiência aórtica. Está representado num mural na Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Nova de Lisboa.


Actividade Profissional

A chegada de Francisco Hopffer a Cabo Verde, foi uma lufada de ar fresco e o seu desempenho pagou, folgadamente, os 705$140 reis que custou ao erário público a sua formação durante 11 anos em Lisboa.

A sua excelente preparação sobressaiu perante os colegas e as entidades oficiais, e cedo foi nomeado para funções de responsabilidade, apesar da sua juventude e de estar em início de carreira.

O Governador nomeou-o membro da Comissão de Saúde Pública e, por inerência, da Junta de Saúde e, face ao descalabro que era a salubridade da Vila da Praia, começou de imediato a preparar um plano para pôr cobro à situação.

Por outro lado, foi incumbido, cerca de seis meses depois de tomar posse como cirurgião de 2ª classe, de criticar o diferendo que havia entre o Físico mor Dr. Luís Filiberti, que andava desavindo com o Secretário Geral da Província, e o Director interino da Alfândega, e, apesar de elogiar claramente o trabalho do colega, não impediu que fosse exonerado.

Mais tarde, apercebeu-se de que a água que era fornecida ao Hospital provinha da Praia Negra e era de má qualidade e conseguiu que fosse contratada água do Montagarro, muito melhor, por 19$200 reis anuais. Nessa mesma ocasião, conseguiu a aquisição de um barómetro e de um termómetro, e autorização para enviar duas caixas de ferros cirúrgicos para Lisboa, a fim de serem restaurados.

Na reunião seguinte da Junta, propôs a nomeação de um segundo enfermeiro que pudesse substituir o existente em caso de ausência, evitando assim graves prejuízos para as actividades do Hospital sempre que o enfermeiro faltasse.

Propôs ainda o reforço do número de moços, ao tempo, uma espécie de auxiliares de enfermaria, e sugeriu que fossem recrutadas mulheres para o efeito, tendo em atenção a idade e a conduta, e salientando que era o que estava a acontecer na Europa, designadamente, Bruxelas, Londres e Paris, onde as Irmãs de Caridade desempenhavam muito bem essas funções. Sublinhava que as mulheres têm mais humanidade, paciência e resignação e, portanto, mais aptidões para essas tarefas.

Propôs também que fossem aumentadas as remunerações, a fim de incentivar os funcionários a ter um melhor desempenho.

Sem dúvida, revolucionário para a época!

Em finais de 1853, aconteceu uma situação caricata em S. Vicente, pois o cirurgião que lá estava, Dr. Mayer, obrigou um barco com escorbuto a bordo, a ficar de quarentena. Isto deu origem a alguma chacota, à suspensão do referido cirurgião e à colocação do Dr. Hopffer em S. Vicente.

Perante a possibilidade, do Dr. Mayer ser colocado a bordo de um pequeno barco que fazia a ligação entre as ilhas, como penalização por essa “risível” negligência, o Dr. Hopffer insurgiu-se, porque considerava um desperdício instalar um facultativo num barco com pouca tripulação e poucos passageiros, havendo diversas ilhas sem médico.

Não se sabe se consequência deste protesto de Hopffer ou não, a verdade é que Mayer foi transferido para S. Nicolau.

Foi ainda a convicção e a firmeza da argumentação do Dr. Hopffer, que permitiram a colocação de um 1º Farmacêutico em S. Vicente, em detrimento de Santiago.

Mas a obra maior foi, sem dúvida, a influência que teve junto do Governador da altura, Conselheiro António Arrobas, na área da Higiene Pública, orientando-o, não só no enxugamento dos pântanos da Várzea da Companhia e da Praia Negra e dos charcos que se formavam nas ruas da Vila após as chuvas, mas também, nas medidas a tomar em caso de epidemia, no sentido de isolar os doentes e suspeitos que chegavam à ilha, levando à construção do Lazareto, no prazo record de 30 horas, em 1855: um complexo de seis casas arejadas, cobertas por tectos adequados, assoalhadas e mobiladas.

Cerca de 10 anos mais tarde, o Lazareto seria transformado em armazém de peles e curtumes e, um ano depois, em asilo para mendigos.

Foi para fazer face a estas despesas que Arrobas lançou o imposto “ad valorum” de 3%, sobre todos os produtos entrados e saídos da Praia, executado por uma Comissão autónoma, que funcionava perto do actual mercado, mas sem autorização do Poder Central, ousadia que lhe viria a custar a não recondução para segundo mandato.

Conseguiu, contudo, dar início ao saneamento da Vila e lançar o novo Hospital Civil e Militar, que quase concluiu, e que seria o embrião do actual Hospital Agostinho Neto. Diz quem sabe que até tinha um certo luxo!

O Governador que lhe sucedeu, Calheiros de Menezes, de outra corrente política, não deu continuidade à construção do Hospital alegando que sendo para indigentes, era encargo da Santa Casa da Misericórdia e não da Fazenda Pública. Foi autorizado a lançar o Imposto dos 3% e continuou os trabalhos de Higiene Pública da Província.

Estava o nosso homenageado em S. Vicente quando faleceu o cirurgião da Praça de S. José de Bissau e era ele quem estava na calha para o substituir, visto ser o mais recente do Quadro.

Alegou falta de saúde, designadamente gastrite por excesso de quinino, falta de condições de salubridade em Bissau e outras razões pessoais e recusou-se a ir ameaçando pedir a demissão, se insistissem em contrário, chegando mesmo a entregar um requerimento nesse sentido, dirigido a Sua Majestade.

Esta atitude criou um problema ao Presidente da Junta porque, não só não podia nomear o médico que se seguia em escala por já ter 70 anos e ser muito doente, como não queria abrir um precedente que, no futuro, permitisse que ninguém quisesse ir para Bissau.

Perante a intransigência de Hopffer, o Presidente da Junta determinou que o Comandante Militar de S. Vicente o obrigasse a embarcar para a Vila da Praia a fim de ser presente à Junta e ser ponderada a sua incapacidade.

Já na Praia, o Dr. Hopffer mudou de ideias e resolveu aceitar a Comissão de Serviço em Bissau, pedindo que lhe fosse devolvido o requerimento em que solicitava a demissão, o que aconteceu.

Chegado a Bissau, não tardou a tecer contundente crítica às condições de trabalho, dizendo que aquilo a que pomposamente chamavam de hospital não passava de um eufemismo, porque mais não era que um pedaço de terra cercado por paredes e coberto por um tecto complacente à chuva e com janelas sem vidraças. Além disso, havia manifesta falta de pessoal.

Desconheço o que se terá passado depois, mas findo o destacamento, Hopffer pediu para cumprir nova Comissão, o que foi aceite, tanto mais que persistia o problema da sua rendição, tendo em conta o médico idoso e doente que o seguia na lista.

Durante a estada em Bissau, fez a primeira descrição de Doença do Sono naquele território. Observação notável, se pensarmos que Portugal realizou a primeira missão europeia de estudo da Doença do Sono em África (Angola), em 1901, quase 50 anos depois.

O regresso de Hopffer à Vila da Praia coincidiu com notícias que davam conta de uma possível epidemia de cólera em S. Vicente e, mais uma vez, dando provas de profissionalismo e abnegação disse que suspenderia as férias e os tratamentos a que tinha direito, depois de 20 meses em Bissau, para ir ajudar os colegas naquela ilha. Não chegou a ser necessário.

Em 1857 foi promovido a cirurgião de 1ª classe, por distinção, o que acontecia pela primeira vez no Quadro do Ultramar. O colega preterido, foi o que ficara dispensado de ir para Bissau quando Hopffer optou por fazer segunda Comissão.

Em consequência de uma epidemia de varíola que assolou Santiago, nesse ano, com particular gravidade no Concelho de Santa Catarina, Hopffer foi transferido para esse Concelho e nomeado, interinamente Administrador do Concelho e Presidente da Câmara.

Em Agosto a epidemia foi dada como extinta e Hopffer demitiu-se das funções administrativas, para tristeza da população que pretendia a sua nomeação definitiva como Administrador, em vez da pessoa nomeada, Freire Silva, alegando, numa argumentação infeliz, que este era liberto.

A questão chegou ao ministro Sá da Bandeira que indeferiu o pedido, dizendo que Hopffer, sendo do Quadro de Cirurgiões não podia acumular com o cargo de Administrador do Concelho e que, o facto de ser liberto não era impeditivo para Freire Silva, ao abrigo da Lei de Protecção dos Escravos.

Mais tarde, o Dr. Hopffer acumulou as funções de Boticário, auferindo também o respectiva remuneração e, apesar desta acumulação ser ilegal, o Presidente da Câmara manteve a nomeação, contrapondo que a necessidade não tem lei.

Em 1858 a Vila da Praia ascende a Cidade e as Povoações do Mindelo e Bissau, a Vila.

No ano seguinte Hopffer embarca para Lisboa, por motivos de saúde, dizendo, em Ofício de despedida à população, que iria ausentar-se por alguns anos.

Assim aconteceu.

Regressaria a Cabo Verde cerca de 10 anos depois, indigitado por Sua Majestade, para sindicar o Delegado de Saúde de S. Vicente, Dr. Jaques Nicolau Salis, muito conceituado nas “altas esferas”, que acabou por ser exonerado de funções por Decreto Régio, a 3 de Março de 1871.

Entretanto as ruas e pátios da Cidade, começavam a ser calcetados e varridos com regularidade, a lavagem de roupas e o despejo de dejectos e entulhos passaram a ter locais apropriados, a canalização da água do Montagarro foi revista e generalizada à cidade, as antigas fontes desentulhadas e ajardinadas, a inumação dos cadáveres passou a obedecer a novas regras, havia muito menos animais nas ruas e pátios, etc.

Foi nessa altura que aconteceu um episódio curioso e até anedótico: o Presidente da Junta chamou à atenção do Presidente da Câmara porque continuava a haver alguns animais, nomeadamente porcos, nas ruas da cidade e nos pátios das casas, contrariamente às posturas da Câmara. De pronto, o munícipe respondeu que ele próprio fez uma ronda às casas e foi encontrar porcos no pátio do Director de Saúde e na casa de um outro indivíduo, este reincidente, onde também estava o nosso Dr. Francisco Hopffer que toda a vida se dedicou ao combate à insalubridade a ponto de ser conhecido como “Apóstolo da Higiene”.

Não há dúvida que a perfeição não é deste mundo.

Em 1872, o Dr. Hopffer segue para Santo Antão, até 1876, onde escreveu uma excelente obra sobre a ilha.

Em meados de 1876 as queixas reumatismais atingem-no com grande intensidade pelo que embarca para S. Vicente e depois para Lisboa, a fim de ser tratado.

Regressa nesse mesmo ano e são-lhe contados 24 anos, um mês e vinte e nove dias de serviço.

Em Outubro é nomeado Chefe do Serviço de Saúde de Cabo Verde e em Novembro é reformado com a graduação de tenente coronel.

Decididamente, Cabo Verde tinha mudado, e a Cidade da Praia tinha sido submetida a uma esmerada cirurgia plástica.


Outras Actividades

Mas o Doutor Francisco Frederico Hopffer notabilizou-se noutras áreas.

Foi um incansável pedagogo, sendo de realçar os Cursos Livres de Higiene que começou por ministrar em Lisboa em 1868 no Centro Promotor das Classes Laboriosas no Palácio do Conde de Almada ao Rossio e, posteriormente, na Cidade da Praia, primeiro no “Teatro Africano” e depois no edifício da Câmara Municipal.

Foram cursos de entrada livre, muito concorridos, apesar de serem ministrados aos sábados à tarde.

Salienta-se também o Curso de Pequena Cirurgia para Enfermeiros e candidatos a enfermeiros no Hospital Civil e Militar da Cidade da Praia.

Foi membro da Comissão Directiva da Biblioteca e Museus Nacionais, juntamente com os Drs. Alfredo Trony e João Lacerda, e ajudou a criar a primeira Biblioteca da Praia, oferecendo muitos livros da sua biblioteca particular.

Foi membro da academia Real das Ciências e Colaborador do Museu de Produtos Naturais de Cabo Verde.

Publicou múltiplos trabalhos, sendo de destacar, além de diversos Relatórios, o livro, “Apontamentos Sobre a Topografia Médica da Ilha do Maio” (talvez o 1º livro cabo-verdiano escrito por um cabo-verdiano) e o trabalho intitulado “Instruções higiénicas que se devem observar no enxugamento dos pântanos”, num tempo em que ainda não se conhecia o papel do mosquito Anopheles, e aconselhando o uso do quinino como profiláctico.

Subscreveu diversos trabalhos de Polémica Política sobretudo com José da Silva Mendes Leal e Francisco Luís Gomes na Revista Revolução de Setembro.

Deixou várias publicações médicas no Boletim Oficial de Cabo Verde, na Gazeta Médica de Lisboa e no Jornal da Sociedade das Ciências Médicas, e ainda outras, de carácter mais geral, no Almanach Luso-Africano e no Novo Almanaque de Lembranças Luso-Brasileiro.

Foi um cidadão atento ao que se passava à sua volta, e trocou correspondência com algumas individualidades da época, sendo de destacar:

  • Carta a José Vicente Barbosa du Bocage, vice-presidente da Academia Geral das Ciências, datada de 26/2/1896, explicando a origem dos répteis que lhe enviou, salientando que os da primeira remessa eram originários do ilhéu Branco, e os da segunda, do ilhéu Raso. (Extraído do manuscrito).
  • Os lagartos do ilhéu Raso (Macroscincus coctei) estavam em vias de extinção e acabaram por desaparecer de vez, quando um grupo de criminosos foi degredado para aquele ilhéu e devoraram-nos para não morrer à fome. Até sapatos fabricaram com a pele dos malogrados lagartos.
  • Carta a João Cardoso Júnior, “distintíssimo Africanista”, assim o tratava, agradecendo a oferta da obra, em dois volumes: “Subsídios para a Matéria Médica e Terapêutica das Possessões Ultramarinas Portuguesas”, 1902 e 1905.
  • Carta a Teófilo Braga (1910), felicitando-o pela implantação da República.
  • Carta a Bernardino Machado (1911), felicitando-o pelo papel que teve como ministro do Governo Provisório da República Portuguesa.
  • Carta a Bernardino Machado (1914), felicitando-o pelo seu regresso triunfal do Brasil.
  • Como já referi, manteve uma boa relação de amizade com Bulhão Pato desde os tempos da Escola Médica, sendo por ele referido em várias das suas obras.

A sua cultura aliada à grande capacidade organizacional foram sempre reconhecidas pelos governantes, e constituíram razões sobejas para ser várias vezes indigitado e nomeado para diversos cargos da Administração Pública em Cabo Verde e não só.

  • Membro de Comissão de Saúde Pública de Cabo Verde (16/6/1852).
  • Membro da Comissão de Instrução Pública de Cabo Verde (16/6/1852).
  • Membro da Junta de Saúde Pública de Cabo Verde (16/6/1852)
  • Vogal do Conselho de Instrução Primária, nomeado pelo Governador Geral da Província de Cabo Verde, tendo em conta as suas habilitações (31/5/1852).
  • Delegado de Saúde da ilha de S. Vicente (1853)
  • Membro da Comissão Municipal da Ilha de S. Vicente (1853).
  • Director do Hospital Militar da Praça de S. José de Bissau (6/11/1855).
  • Delegado do Serviço de Saúde Marítimo da Praça de S. José de Bissau (6/11/1855).
  • Administrador do Concelho de Santa Catarina (27/1/1857).
  • Presidente de Câmara Municipal de Santa Catarina (27/1/1857).
  • Director interino do Serviço de Saúde de Cabo Verde (Outubro de 1857).
  • Vogal do Conselho de Saúde Naval e do Ultramar. Promovido por distinção, pelo ministro da Marinha “por ter habilitações científicas superiores às de todos os outros cirurgiões que servem actualmente no Ultramar”. A promoção foi confirmada por Decreto Real (24/11/1859). Serviu com a graduação de capitão-de-fragata, graduação que manteve depois de ser exonerado em 26/12/1868) por extinção do respectivo Conselho. Seguiria para a Província de Cabo Verde, a fim de continuar as funções de facultativo de 1ª classe (5/4/1869).
  • Director do Hospital Civil e Militar Cidade da Praia (1870).
  • Chefe interino do Serviço de Saúde (1870).
  • Presidente da Comissão Municipal do Concelho da Vila da Ribeira Grande na ilha de Santo Antão (1874).

Montou consultório na Calçada de Santo André (1868), sendo o primeiro consultório médico privado da Capital. Por ter uma clientela muito grande, viu-se na necessidade de abrir outro consultório, desta vez, na Rua do Ouro.

Além da residência em Lisboa, na Rua da Palma nº 224 – 1º Esquerdo, edifício de dois andares ainda existente, próximo da Praça Martim Moniz, tinha casa em Sintra para onde se deslocava sempre que podia.

Apesar de toda a actividade do Doutor Hopffer se poder considerar política, em busca de melhores condições de saúde para Povo de Cabo Verde, não resisto a sublinhar três episódios marcantes:

  • Participou na Revolta de Maria da Fonte (1846).
  • Concedeu alforria a seis escravos quando foi, Administrador de Santa Catarina.
  • Esteve do lado de Arrobas nas eleições para deputado, o que lhe valeu um duelo de sabre com um apoiante da outra candidatura e uma ida a Conselho de Guerra que acabou em prisão na ilha do Maio, felizmente por poucos dias.

Louvores e Condecorações

Resultante de toda esta actividade, Hopffer foi alvo de várias distinções, entre as quais destaco:

  • Louvor do Governador Geral da Província pela resposta pronta que deu à decisão da Comissão Municipal de lhe ordenar ajuda à ilha de Santo Antão face à epidemia de paludismo, apesar do incómodo causado à Junta de Saúde que se sentiu ultrapassada por aquela Comissão (12/12/1853).
  • Louvor de Sua Majestade El-Rei, na sequência de ofício do Governador Geral da Província de Cabo Verde pela alforria concedida a seis escravos, dando cumprimento às leis de protecção de escravos, durante a sua actividade como Administrador do Concelho de Santa Catarina (9/11/1857).
  • Cavaleiro da antiga e mui nobre Ordem da Torre e Espada, Lealdade e Mérito, pelo desempenho na luta contra a epidemia de Cólera-morbus no Concelho de Santa Catarina, na ilha de Santiago em 1856 e 1857 (2/12/1859).
  • Louvor do Governador Geral da Província de Cabo Verde, pela forma empenhada e competente como dirigia o Hospital Civil e Militar da Cidade da Praia (19/4/1870).
  • Louvor de Sua Majestade El-Rei, através do Governador Geral, pelo cuidado que lhe mereceu a higiene pública e a direcção do Serviço de Saúde (23/11/1870).
  • Grau de Oficial da Ordem de Santiago, do Mérito Científico, Literário e Artístico, pelos trabalhos apresentados na exposição médica de Amsterdão em 1883 (8/5/1884).
  • Comenda da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo (Ofício do Conselheiro Director-Geral do Ministério da Marinha e Ultramar, de 30 de Junho de 1884).

Epílogo

Esta é a história que trouxe para vos contar e procurei que espelhasse, sem deformações grosseiras, a imagem de um dos nossos grandes.

É estranho que em cem anos, as várias gerações que foram passando, não tenham tido o vagar suficiente nem o reconhecimento bastante para lhe darem o direito de ter o nome na identificação de uma praceta, ou de uma rua, ou de um simples beco.

Muito obrigado.

Carlos Henrique Simões de Santa Rita Vieira.

No Centenário da Morte do Doutor Francisco Frederico Hopffer.

Associação Caboverdeana, 26 de Outubro de 2019.