Mário Fonseca – Algumas considerações na VIII Quinzena da Cultura Cabo-verdiana em Lisboa

Mário Fonseca – Algumas considerações na VIII Quinzena da Cultura Cabo-verdiana em Lisboa

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Este texto enquadra-se na VIII QUINZENA DA CULTURA CABO-VERDIANA EM LISBOA, em homenagem a António Pedro Costa, Francisco Frederico Hopffer, Henrique Teixeira de Sousa, Tututa Évora e Mário Fonseca, organizada pela Associação Caboverdeana de Lisboa e pretende apenas tecer algumas considerações sobre  o poeta Mário Fonseca, um dos imortais da Academia Cabo-verdiana de Letras.

Em meados dos anos Oitenta do século passado, o Movimento Pró-Cultura operou uma grande transformação na literatura cabo-verdiana, mudando-lhe a geração, alterando-lhe a temática e o sentido, imprimindo-lhe um caráter não telúrico e não cantalutista e, acima de tudo, conferindo-lhe uma nova modernidade. Era um novo tempo de transgredir o terra a terra e torná-lo fantástico, existencial e universal. Torná-lo “Mon Pays Est Une Musique”.

Torná-lo:

(…)
Mon pays est une musique que j’entends quand je n’entends plus rien.
Mon pays est une couleur où plonger est mon bonheur.
(…)

Mário Fonseca fizera a sua primeira reaparição em Cabo Verde, na segunda metade dos anos Oitenta, depois de longo exílio, já com o Movimento Pró Cultura criado, e surgira para poetas iniciáticos como Eurico Barros, Filinto Elísio, José Luís Hopffer Almada, o ainda jovem José Luiz Tavares e Mito, entre outros, como umas das consagrações de uma outra e necessária poética cabo-verdiana.

Escrevia em língua francesa, mas estruturalmente era um poeta do mundo, um poeta-mundo, como explicaria mais tarde num poema “Petits exercices en français/ D’un poète exilé de son pays et de sa langue/ Rien que pour vous dire/que l’homme ne meurt jamais/ Tout à fait/ Lorsqu’on le tue/le retue/ Et  qu’on l’enterre/et qu’il disparaît à jamais sous la terre”.

Mário Fonseca, tendo sido um dos escritores mais expressivos da sua geração dos anos Cinquenta e Sessenta, manteve-se como uma das referências ativas e interativas para as gerações seguintes. Como seus contemporâneos Arménio Vieira, Oswaldo Osório, Ovídio Martins e Tacalhe. Refira-se que, juntamente com Arménio Vieira, Oswaldo Osório e Jorge Miranda Alfama, ele pertencera eventualmente à geração da Nova Largada e à chamada geração Seló, em torno de um suplemento literário que se publicou em São Vicente, por estudantes no Liceu Gil Eanes em 1962. Mário Fonseca começa por laborar em versos de afirmação anticolonial e anti-assimilacionista, como fica patente no poema lapidar “Quando a vida nascer”. A poesia inicial de Mário Fonseca, dizia, publicada também no então Boletim Cabo Verde, na cidade da Praia, traz a marca da inquietação do seu tempo, com apelos revolucionários e luta anticolonial. E “Quando a vida nascer”, publicado em 1959, é tido como exemplo mais paradigmático.

Mário Fonseca também assume clara africanidade no seu texto, africanidade arredada do discurso poético da elite literária crioula anterior, à exceção do Nativista Pedro Cardoso com “Ode à África”, de António Nunes em “Ritmo do Pilão”, Aguinaldo Fonseca em “Herança” e Felisberto Viera Lopes, com o seu livro “Noti”. Em Mário Fonseca a africanidade é assumida através do poema “Eis-me aqui África”.

Quem era Mário Fonseca?

Em plena noite colonial, pelo meu pai, alguns versos faziam serões na nossa casa. Para além daqueles de “Quando a vida nascer”, declamávamos, eu e o meu irmão António, extractos do poema que Mário Fonseca dedicara ao seu irmão Daniel, entretanto, abatido na guerra colonial em Moçambique:

(…)
Esta é a candente terra de negrura
Onde debalde fincamos a nossa dor
E o sangue inocente que ainda jorra,
No chão da maldição, em imenso clamor.

Olvidado na pompa e na púrpura
Da investidura de reinos sem pudor,
Construídos no terror e na mentira
Da traição à sacra promessa de amor.
(…)

Mário Fonseca nasceu a 12 de Novembro de 1939. Mais tarde, adulto, adere ao PAIGC, Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde, com quem haveria contudo de romper ou a manter uma relação ambivalente. Mário Fonseca licenciou-se em Letras na Universidade de Dakar e foi professor, tradutor e administrativo no Senegal, Mauritânia e Turquia. Nos anos noventa, depois da abertura política, ele retorna definitivamente  a Cabo Verde, tendo sido presidente do então Instituto Nacional da Cultura, INAC. Faleceu aos 69 anos, na sua cidade natal, vítima de um acidente vascular cerebral (AVC).

Entre as suas obras estão “O Mar e as Rosas” (desaparecido em circunstâncias da censura na sede da Sociedade Portuguesa de Escritores), “Mon Pays est une Musique”, “Près de la mer”, “L´Odiférante Evidence de Soleil qu´est Une Orange” e “La Mer à Tous les Coups”. Terá deixado vários manuscritos por publicar, além de textos dispersos (ensaios, artigos vários), entre outros materiais.

Quem era realmente Mário Fonseca?

Mário Fonseca tinha uma poética de complexa codificação, elementos surreais predominavam nos seus textos, atestando uma diversificada leitura do autor, dado à intertextualidade, que leva à constante releitura.

Entretanto, não vou aqui falar dos engenhosos recursos criativos e do artesanato oficinal de Mário Fonseca. Trago para esta jornada a figura de um intelectual cabo-verdiano singular e de talento, que fez opção pela escrita como forma de superar a sua permanente inquietação estética. Mais, intelectual que foi um alumbramento para os poetas da novíssima geração, que já “militavam” no Movimento Pró Cultura.

Mário era “un foncé cas” – um caso obscuro aos olhos do meio. Paradoxalmente, por que era um “iluminista moderno”, trouxe-nos ele uma luz que ofuscava qualquer claridade da literatura cabo-verdiana e a sua ancestralidade, que também lhe era apanágio, ancorava-se na tangência dos Nativistas Pedro Cardoso, Eugénio Tavares e Luís Loff de Vasconcelos e, dos mais contemporâneos, como António Pedro Costa, Jaime de Figueiredo e Pedro Corsino de Azevedo.

Com referências globais, Mário Fonseca foi um autêntico leitorado de escritores como Ezra Pound, Omar Khayam, Sade, Pushkin, Tennyson, Maiakovski, Lautréamont, Max Jacob, Giuseppe Ungaretti, Rubén Darío, Reverdy, Jean Cocteau, Apollinaire; como Homero, Virgílio (Publius), Catulo, Petrarca, Dante, Camões, Tasso, Góngora, Shakespeare, Quevedo, Victor Hugo, Edgar Allan Poe, Baudelaire, Breton, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud Juan Ramón Jiménez, Saint-John Perse, Walt Whitman, Fernando Pessoa, García Lorca, Jorge Luís Borges e Pablo Neruda, entre outros.

Igualmente, introduziu referências das literaturas africanas, pan-africanas e das diásporas africanas. Nomes como Wole Soyinka, Jean-Baptiste Tati-Loutard, Leopold Sédar Senghor, Cheick Anta Diop, Tchicaya U Tam’si, Aimé Cesaire, Hampatê Ba, Chinua Achebe, James Baldwin, Richard Wrigt, Langston Hughes, Amiri Baraka, Tony Morrison, Dereck Walcott e Maya Angelou, só para citar alguns.   

Cumpre-me assumir que é uma honra ocupar a Cadeira Mário Fonseca na Academia Cabo-Verdiana de Letras; assumir que levo a sério o desafio de criar uma Cátedra com o seu nome, cuidando do legado literário que engrandece as Letras Cabo-verdianas e da sua cosmovisão ontológica que ainda hoje ultrapassa a sociedade cabo-verdiana. Ele fez poesia de estrato erudito e de cariz existencialista, fez crónicas de afrontamento político, social e cultural, e fez palestras de inquietação intelectual e filosófica.

À atenção para o manifesto estético-existencialista dos poemas de Mário Fonseca, nestes versos que cito “Si mourir est mourir au monde/ Une poignée de morts sont encore bien vivants : Lénine, Sade, Diderot, Omar/Kayum, Gilbert Leli, moi etc.” Ele implica-nos, a mim e aos da minha geração, para novos eixos de gravitação poética e literária.