Mário Fonseca poeta caboverdiano da Africanidade e da Afrocrioulitude

Mário Fonseca poeta caboverdiano da Africanidade e da Afrocrioulitude

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Os especialistas nos estudos da literatura caboverdiana parecem concordar Na asserção segundo a qual escassos são os traços de africanidade e de negritude na poesia caboverdiana da época anterior ao movimento político-cultural da Nova Largada.

Tal constatação não autoriza, no entanto, à desvalorização e/ou à subestimação, nem sequer à obliteração da pertinência histórica das diferentes modulações africanizantes e negritudizantes na funcionalização político-ideológica emancipatória da crioulidade caboverdiana, bem como dos fortes impacto e ímpeto mobilizadores do nacionalismo africano e do pan-africanismo político e o efeito de catarse e libertação espiritual e cultural que exerceu o projecto da unidade Guiné-Cabo Verde no resgate e no vigoroso renascimento da matriz africana da cultura caboverdiana e da nossa afro-crioulidade.

É a esses ímpeto e impacto mobilizadores no quadro da funcionalização político-ideológica e pragmático-independentista das várias componentes matriciais afro-negras da nossa identidade e à sua pertinência histórica que fizemos eco nos nossos textos “A poética caboverdeana e os caminhos da nova geração” (revista “Fragmentos”, nrs 7/8, Praia, 1989, retomada numa versão bilingue francês-português mais concisa sob o título “A poesia caboverdiana pós-claridosa – alguns traços da sua arquitectura”, em Cabo Verde: Literatura e Insularidade, coordenação de Manuel Veiga, Edições Kharthala, Paris, 1998), “Homogeneidade e Heterogeneidade da Caboverdianidade” (publicado originariamente no jornal Voz di Povo e depois republicado na revista Fragmentos, nrs 11/15, Praia, Dezembro de 1991).

A esses impacto, pertinência e ímpeto mobilizadores não foram alheias as repercussões do combate cívico, cultural e armado do movimento negro (ou afro-) americano e dos movimentos de libertação africanos, inseridos num mais geral revolucionarismo terceiro-mundista, e as influências das culturas do mundo negro, com destaque para a música (em especial, o jazz, o blues e os ritmos afro-caribenhos), a literatura, destacando-se a francófona da Anthologie de la Nouvelle Poésie Négre et Malgache d’ Expression Française (organizada por Senghor) e da poesia e do ensaio de Césaire de, por exemplo, Cahier d´un Retour au Pays Natal e Discours sur le Colonialisme, e incluindo a lusógrafa, com destaque para a brasileira de Jorge Amado, e a ensaística de abordagem dos valores e dos problemas do mundo negro, intermediada e veiculada pela “Casa dos Estudantes do Império- CEI” (1948-1964), pelo “Centro de Estudos Africanos” (1952-1954), pelas “repúblicas estudantis” coimbrãs, pelas revistas Mensagem, da CEI, e Présence Africaine, e por outras formas de intercâmbio e tertúlia político-culturais nacionalistas e pan-africanistas, vivenciadas pelos jovens intelectuais caboverdianos na capital do império, em Coimbra e em outras cidades universitárias portuguesas.

Tanto mais, quando se passou a encarar a crioulitude, a mulatitude e outras expressões da chamada caboverdianidade também como produtos de sociedades coloniais bem como das diásporas afro-ocidentais, produzidas ou dilaceradas pela mestiçagem racial e/ou cultural, e pelas políticas de assimilação às cultura europeias e de repressão, de forma mais subtil ou mais aberta, das manifestações culturais filiadas na herança afro-negra.

2. Constitui assinalável testemunho das modulações acima referidas a poesia caboverdiana da afro-crioulitude (e/ou, se se preferir, da afro-caboverdianitude ou da negritude e da africanitude crioulas ou da cabo-verdianitude, como prefere dizer o Professor Pires Laranjeira para designar a fase literária africanizante da poesia caboverdiana de contestação política anticolonial), isto é, aquela poesia que referencia de forma positiva, inclusiva e, assaz, afirmativa, a contribuição da matriz afro-negra na formação da crioulidade caboverdiana, evidencia a presença étnico-cultural e/ou étnico-racial do homem negro, negro-mestiçado ou afrodescendente na sociedade caboverdiana e, sem necessariamente desvalorizar a evidente ocidentalidade da cultura caboverdiana, implícita na construção simbólica e na vivência da nossa crioulidade (enquanto afro-latinidade), considera-a também inserida no vasto “mundo negro”, isto é, naquele espaço cultural onde se situam, em coexistência, em fusão ou em conflito com outras culturas, mormente as de origem europeia, as culturas negro-africanas, afro-negras e afro-europeias da África, das Américas e, cada vez mais, da Europa.

2. 1. A poesia da afro-crioulitide (ou, mais, impropriamente, da negritude ou/e da africanitude crioula, da negro-crioulitude) começou por ser uma poesia que se alimentava da mesma ambiguidade e ambivalência identitárias, características do pan-africanismo nativista, republicano e luso-patriota dos letrados cabo-verdianos, que, para os estritos efeitos de análise do assunto em referência, têm em Pedro Cardoso o seu mais insigne representante.

Pedro Cardoso, o Afro do seu muito profícuo pseudónimo para uma parte da sua produção jornalística, apóstolo do socialismo e de Marx, “o mestre venerando” (como consta do poema “Primeiro de Dezembro”, de louvação do movimento sindical caboverdiano, in Jardim das Hespérides, Famalicão, Tipografia “Minerva” de Cruz, Sousa & Barbosa, Lda, 1926), que, procurando integrar-se na transpátria lusitana (na “pátria monumental portuguesa”, como prefere dizer Gabriel Fernandes), enquanto português de lei e de pleno direito, igualmente combateu pela igualdade entre brancos e negros e entre “portugueses europeus e portugueses africanos”, pugnou, em especial nos seus célebres poemas “Ao Egipto” (in Folclore Cabo-Verdiano , reeditado por Luís Silva, em 1986, com prefácio de Alfredo Margarido e chancela da Associação Solidariedade Cabo-Verdiana, sedeada em Paris) e “Ode a África” (constante do supra-referenciado  Jardim das Hespérides), e na sua coluna “A Manduco” do jornal A Voz de Cabo Verde (Praia, Março de 1911- Setembro de 1918) pelo orgulho da África faraónica e esfíngica, da Cartago de Aníbal, da Abissínia (Etiópia) do Negus Menelik, da África resistente de Abdel Kader, da raça negra do Haiti alevantada com Toussaint Louverture contra o colonial-esclavagismo, bateu-se pela justiça social e pela disseminação, numa perspectiva positivista, do saber e da instrução, enquanto baluartes da “civilização contra a barbárie” (na certeira interpretação do estudioso afro-americano Russel Hamilton constante do seu livro Literatura Africana, Literatura Necessária, Volume II, Edições 70, Lisboa, 1984) e, finalmente, exaltou-se, exultando-se, pela valorização da mátria cabo-verdiana, da língua e das nossas raízes crioulas, ainda que com muitas reservas em relação às nossas manifestações culturais mais ostensivamente afro-crioulas (como o batuco e a tabanca de Santiago, no entanto recolhidas no seu Folclore Cabo-Verdiano, e, por isso, implicitamente valorizadas como manifestações culturais cabo-verdianas legítimas, ou em contraposição às nossas matrizes afro-negras, consideradas gentílicas.

A defesa do crioulo e a sua valorização poética mediante a estilização do folclore poético da ilha do Fogo constitui uma das vertentes mais notáveis e assinaláveis da faceta de intelectual de Pedro Cardoso.

A poesia em crioulo desse nativista permite detectar as suas preocupações de justiça social e dissecação da componente racialista da conflitualidade social caboverdiana da altura, como o atestam os textos poéticos publicados, por exemplo, no acima referido Folclore Cabo-Verdiano.

Neste contexto, é de se destacar a luta extenuante desse grande nativista, do “Langston Hughes caboverdiano” (segundo qualificação de Teixeira de Sousa em entrevista a Michel Laban (Cabo Verde-Encontro com EscritoresPrimeiro Volume, Fundação António de Almeida, Porto, s/d), desse importante precursor, com António Nunes, do nacionalismo cabo-verdiano no domínio da poesia pela inclusão cívica e social da componente racial negra da nossa sociedade, particularmente pertinente se levarmos em consideração a exclusão social e a anatemização como preto-negros dos mulatos e negros pobres da ilha do Fogo, o derradeiro e quase inexpugnável santuário do racismo da oligarquia branca crioula em Cabo Verde.

Tal combate inseria, como referido, uma componente de referência pan-africanista e/ou de exaltação e de recorrência rememorativa às glórias passadas da África cartaginesa e da África esfíngica, faraónica e mediterrânica (como referíramos já no ensaio “A poética caboverdeana e os caminhos da nova geração”, publicado no nº duplo 7/8 da revista de letras, artes e cultura Fragmentos, de Dezembro de 1991) e do seu crucial papel na formação da cultura greco-latina e da cultura euro-ocidental, bem como o desconforto intelectual e civilizacional provocado pelo jugo colonial ocidental. Ainda assim, não pode o pan-africanismo de Pedro Cardoso obnubilar a sua compreensão dos Negros, no duplo sentido, de raça martirizada que escavou os alicerces do mundo, mas também “do sertão os rudes e tisnados filhos/Almas de neve em corpos de carvão”, carecidos e necessitados, no dealbar da modernidade, da instrução e das luzes missionárias da civilização cristã e ocidental.

Assim, permanecia tal compreensão eivada de preconceitos assimilacionistas eurocêntricos, estigmatizantes da alegada barbárie do homem negro-africano “do mato”, e do dilema positivista civilização versus barbárie, conforme detecta certeiramente Russel Hamilton na obra acima referenciada. É o que uma leitura, ainda que breve, de alguns excertos do célebre, mas pouco divulgado, poema “Ode a África” (publicado na íntegra por Manuel Ferreira na terceira edição, de 1985, de A Aventura Crioula, deixa entrever e transparecer:

África minha, das Esfinges berço
já foste grande, poderosa e livre:
Já sob os golpes do teu gládio ingente
Tremeu o Tibre

Como o soberbo baobá frondente,
Os longos braços levantando aos céus,
Ao longe fôste em iberinas plagas
Erguer troféus!

Do Tigre os vales e da Ibéria os ecos

O nome teu em tempos aprenderam;
E ao teu poder da Babilónia os filhos
Valor perderam!

Dos teus ousados barinéis ovantes
As ondas bravas do Interior aradas,
Por longos anos de opressão gemeram
Avassaladoras!

Entre os antigos já Cartago e Egipto
Foram empórios de poder e fama
Por fim caíram… foram-lhe Calvário
Pelúsio e Zama
Sim, foste grande, dominaste o mundo; 
Mas hoje jazes sem poder sem nada. 
E ao férreo jugo das potências gemes Manietada. 
Sobre o teu corpo, ó meu leão dormente,
Vieram bárbaras nações pousar; 
E quais harpias truculentas, feras, 
Nele cevar 

Ó Pátria minha idolatrada e mesta, 
Quando nos campos de batalha erguias
Teus estandartes, forte, não sonharas
Tão tristes dias! 
Se foste tu quem acendeu o facho
Que fez da Grécia a Glória peregrina
Porque hoje vergas para o chão a fronte
Adamantina?! 
Vós que do túmulo dormis à sombra,
«quebrando a lousa do feral jazido»,
Surgi! Erguei-vos desse pó, 
guerreiros Do Egipto antigo
E tu, Aníbal, imortal caudilho, 
Que a teus pés viste Roma prosternada, 
Ergue-te e empunha novamente a lança
P’la Líbia amada! 
Cavalheiroso Abdel Kader e Negus
E vós, valentes filhos dos sertões, 
A lanças, chuços expulsai-me todas
Essas nações! 

Mas que digo? Antes repousai, guerreiros
Bem-vinda seja a paz, seja bem-vinda! 
Longe, canhões a vomitar metralhas
E a paz infinda! 
África minha, das Esfinges berço, 
A voz escuta que te chama e brada:
“Não vês além erguer-se a madrugada?
Por tanto tempo à luz cerraste os olhos,
A doce lei de Cristo esprezando.
Mas eis agora o fim da ignava noite
E o sol raiando!

Curvai os ramos ´té o chão, olaias!
Leões, rugi da vossa soledade,
Saüdando a estrela fulgorosa e linda
Da liberdade!

Deixai, deixai que se derrame prestes
A luz da fé no inóspito sertão,
E, a-par-e-passo, profligando as trevas.
A da instrução!
Missionários mais que heróis ousados,
Sede bem-vindos! Nobres mensageiros
Da Boa Nova por Jesus pregada,
Sóis verdadeiros!

Não cobiçais riquezas deslumbrantes,
Não vindes, não, pelo oiro que seduz;
Ferro homicida não vibrais: vossa arma
É uma cruz!

No cumprimento da missão sublime
Tudo afrontais em nome do Senhor
Golpes, insultos, frio e fome, doenças,
A morte, o horror!

Buscar não vindes, trazer sim, pioneiros!
Da augusta crença a árvore frondosa
Plantai, Apóstolos da paz, na Líbia
Triste e inditosa!

A amar as lusas quinas ensinai-lhes
E a orar a Deus na língua de Camões! 
Breve outros vates ouvireis cantando
Novos varões

(…) 

Egipto! berço da Isis lacrimosa,
Do sacro Nilo de caudais enchentes:
Pátria do Faraós armipotentes
E da Hipatia e Cleópatra formosa!

(…) 

Ergue-te, pois! e o jugo anglo-otomano
Sacudindo, proclama soberano
A tua independência entre as nações!
Que no halo envolto de uma glória infinita,
Do alto dessas pirâmides ainda
Lanças ao mundo rútilos clarões

(…) 

Vós sois, vós sois Pirâmides de Mênfis
de heróicos feitos poema imorredoiro
Em que se gravam dos Menés, os nomes
Em letras de ouro! 

(...) 

Rubras de glória, as Águias napoleónicas
Viste passar altivas, vencedoras…
E hoje, que é delas? Pó e cinzas, trevas
Aterradoras! 
Cantai, tem cada povo a sua Ilíada! 
Cantai da Líbia as sempiternas glórias! 
Que pergaminhos há de tão brilhantes
E altas memórias. 

Dir-se-ia que o poema se espartilha, dilacerado, entre uma consciência eufórica, rebelde e pan-africanista, que celebra figuras gloriosas da História africana, como o cartaginês Aníbal, bem como os heróis e os mártires da resistência africana à empresa colonial, como Abdel Kader ou o Négus da Abissínia, e uma consciência conformada, manietada pela educação escolar cristã-ocidental e pela inelutabilidade, a inevitabilidade, tida, todavia, por necessária, da colonização “civilizadora” europeia, ou domesticada pelo patriotismo luso e pela crença nas vantagens da disseminação da civilização cristã e ocidental, não pela força das armas, mas pela força persuasiva do cristianismo e da sua “intrínseca bondade”.

Trata-se, pois, segundo Pedro Cardoso, da salvação do homem africano não só da pagã ignorância em relação à doutrina cristã, como também do desconhecimento não só das suas glórias próprias, passadas, e do seu contributo para a edificação da civilização ocidental, como também do seu resgate das trevas de uma alegada barbárie, radicadas, iletradas e pré-científicas, no sertão africano, mas também na glória efémera da altivez dos conquistadores europeus, representados pelas águias napoleónicas, carregadas de orgulhosa fatuidade.

Afinal, as pirâmides de Mênfis sobreviveriam à sanha colonial, para testemunhar a eternidade, qual “poema imorredoiro” da “África, das esfinges berço”  e o ressurgimento de uma África vindoura, próspera e orgulhosa dos seus feitos, protagonizados por “novos varões” africanos e devidamente cantados pelos seus vates (“breve outros vates ouvireis cantando/ Novos barões”), pois que “cada povo tem a sua Ilíada” e são “sempiternas as glórias da Líbia” (neste caso, sinónima da África toda) e “brilhantes os seus pergaminhos” e “altas as suas memórias””.

2.2.2.  Por seu lado, o claridoso Jorge Barbosa, interpretando o homem caboverdiano no poema “Povo” (in Obra Poética de Jorge Barbosa, recolha e organização de Arnaldo França e prefácio de Elsa Rodrigues dos Santos, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, Lisboa, 2006) como:

Conflito numa alma só
de duas almas contrárias
buscando-se, amalgamando-se
numa secular fusão;

conflito num sangue só
do forte sangue africano
com o sangue aventureiro
dos homens da Expansão;

conflito num ser somente 
de dois pólos em contacto
na insistente projecção
de muitas gerações...

Denota também uma compreensão da crioulidade caboverdiana como fusão identitária da África e da Europa numa criatura que se mira ao “espelho de Portugal”, mas onde a África, ainda sobreviva, se embacia cada vez mais.

Não obstante tal compreensão, Jorge Barbosa não omite no inventário poético das manifestações culturais crioulas, em que se destacam a morna e o seu mais emblemático rosto, o violão, mas também aquelas expressões culturais ostracizadas pelas elites e pelos poderes coloniais (como o batuco, o badju’l gaita ritmado pelo harmónio e pelos ferrinhos de Santiago), os tambores de São João), bem como as vadias (badias, na grafia correcta),com destaque para a “Pretinha dos Picos”, à qual se interpela, indagando comiserada e fraternalmente:

Onde os batuques,
contigo dançando
na toada dolente
e metálica da viola, 
ao compasso insistente
do coro e das palmas?
Vozes remotas de África,
rumores seculares
da África-Mãe,
ressoando nas almas,
ecoando ao longe
na noite quente
da ilha esquecida!

Interpelação e indagação também extensivas a outras mulheres, pretas (ou não), socialmente marginalizadas, ressaltando a sua vitalidade (as coxas ágeis das negras (conjugando-se com o corpo das raparigas morenas), e demorando-se na mãe embalando a um canto, adocicado pela morna, o menino da cor de ébano.

Do mesmo modo, invectiva a segregação racial nos Estados Unidos da América no poema “Birminghan”, desvela a tragédia dos homens cativos na nau negreira (no poema “Relato das Nau”) e dos seres humanos perdidos na desventura e na voragem da História, quinhentos anos após o achamento (no poema “Meio-Milénio”), refere-se em vários poemas (por exemplo, no poema “Posse”) à “ilha saqueada e perdida nos mares do sul” e, no poema “Monografia” (dado à estampa pela primeira vez, e conjuntamente com os poemas “Relato da Nau” e “Júbilo”, na Publicação Comemorativa do Cinquentenário da revista Claridade), a uma África negra, que, não obstante ser entendida como bárbara e exótica, uma África dir-se-ia inspirada nos postais ilustrados dos safaris, onde:

Artistas de infantis ingenuidades
talham em pedaços de madeira
coloridos animais estranhos, 
divindades, para apetecido tesoiro
das virgens nuas dos sertões

É também considerada como repositório de uma vitalidade primordial que a desembaraçaria do jugo estrangeiro, quando soasse a sua hora clarim.

Numa irreverência que denota sobretudo uma visão progressista e de solidária comunhão com os desprotegidos, com o cabo-verdiano anónimo, humilde, meu irmão, e contrariadora da ideologia e da praxis do Estado Novo português colonial-fascista, dá sinais de querer superar a muita resignação e a fininha e silenciosa revolta melancólica que inundavam a paz burocrática do homem que o habitava, a ele que, no poema “Panfletário”, se sonhava poeta revolucionário.

A “heteronímia” subversiva é, todavia, insuficiente para lhe propiciar o corte político-ideológico para a ruptura nacionalista, não obstante as décadas, vazias de realizações e de muito abandono, o meio-milénio colonial de provações, como amiúde denuncia na sua poesia, em especial em textos marcantes como os já referidos “Povo”, “Relato da Nau”, “Panfletário”, “Meio-Milénio”, “África”, “John de Birmingham” e em outros, igualmente exuberantes de inconformismo, tais como “Casebre”, “Onde” e “Júbilo”, uns editados em vida, outros dados à estampa postumamente em livros e publicações periódicas, depois integrados integrado na sua Obra Poética.

A explicação poderá radicar no capítulo V (“Presença”) do poema “Meio-Milénio”, de muita e irreprimível denúncia:

5 séculos
de abandono
e retardado progresso.

Apesar de tudo
Portugal presente em nós
nos nossos males
nas nossas queixas e súplicas
nas nossas esperanças
nos nossos anseios.

5 séculos
sem eco
na nossa felicidade.

Apesar de tudo
Portugal presente em nós
pela bondade e ternura
que nos ensinou
pela civilização 
que nos deu
pelo sangue
fala
arrogância
valentia
virtudes e defeitos
que nos legou
pelos distantes rumos
da navegação e da aventura
que nos apontou
e porque fez de nós
humanas 
e variáveis criaturas
cordiais e brandas no convívio
no amor violentas 
e volúveis

5 séculos
não perdemos
a fé e o optimismo. 

Apesar de tudo
Portugal presente em nós
no fundo reflectido
do espelho que nos deu
para nos mirarmos
à sua imagem
(na outra face 
que o tempo
vai aos poucos embaciando
África ainda
por nós acenando). 

(…) 

5 séculos
e outros
e outros depois.

Apesar de tudo
Portugal presente
nas nossas almas

melancolicamente
eternamente.

2.2.3. Curioso é também o resgate por parte de Osvaldo Alcântara (pseudónimo para a escrita da poesia de Baltasar Lopes da Silva) de manifestações afro-crioulas ou indiciadoras de forte presença da co-matriz afro-negra, como uma das matrizes do homem crioulo “de depois”, como se verifica no poema “A terra Roxa de Massapés” (publicado pela primeira vez no “Suplemento Literário” do Diário de Lisboa, de 16 de Agosto de 1935 e reeditado na Edição Comemorativa do Cinquentenário da revista Claridade):

Cavador crioulo, que fazes
debruçado sobre a terra roxa de massapés?
Que segredos escutas há quatrocentos anos?
Que raízes tenazes te prendem
ao ventre tirano da tua amante,
amortalhada na erva rala das achadas?
Um dia chegaram às tuas ilhas de basalto
homens de rosto queimado ao sol do mar largo 

(…) 

tinham os olhos povoados de imagens, 
imagens de Prestes João, 
imagens da terra verde e ouro do Brasil.
Mas as tuas ilhas venceram-nos; 
envolveram-nos num abraço feito de
nostalgias
inaugurações 
esmagamentos de montanhas… 
Semearam nas rochas das ilhas 
os farrapos das belezas de além-mar perdidas, 
para sempre perdidas, 
para além, muito para além do horizonte….
Mistérios inauguratórios da madrugada colonial….
Antemanhã de Cabo Verde… 

(…) 
Depois, 
a terra tingiu-se de dorsos negros 
curvados no drama das plantações, 
E um gemido secular varou as tuas ilhas 

(…) 

Era a angústia,
o banzo
do teu avô da Costa d’ África…

Cavador crioulo
ai o teu avô longínquo
curvado
na dor das plantações!
Mas logo,
no engenho
na sombra das ribeiras
na extensão rala das achadas, 
foi o drama
foram as núpcias
(O ritmo do batuque
perturba
e chama para os ritos eternos do amor…

Cavador crioulo,
que fizeste aos teus velhos deuses?
Xangô, Orun, que te morde na torreira das achadas,
Oxu, que te faz sonhar nas serenatas de violão e cavaquinho, 
Iemanjá, que te atrai e mata na sua casa no fundo do mar…
Porque não cantas nos terreiros
malé, malé, assim comba sembelelé?

Que te deixaram?
Tua alma híbrida
presa
ao sortilégio da terra,
à inquietação do mar.

Deixaram-te a herança pesada de depois.
(oh o depois mestiço
nascido
do crepúsculo de hoje
e da madrugada de amanhã).

Num outro escrito, “Poema a Jorge Amado”, também publicado pela primeira vez no “Suplemento literário” do “Diário de Lisboa” de 16 de Agosto de 1935 e reeditado na supra-referenciada edição comemorativa do cinquentenário da revista Claridade, Osvaldo Alcântara rememora as personagens e expressões afro-brasileiras dos romances de Jorge Amado para estabelecer laços sentimentais e conexões crioulas entre os dois países atlânticos, construídos sobre idênticas raízes antropológicas.

De todo o modo, alguns versos soam inesperados, se nos reportarmos à almejada “diluição de África”, teorizada por Baltasar Lopes da Silva no ensaio Cabo Verde visto por Gilberto Freyre, e à escassa recepção da confitualidade socio-racial dos romances nordestinos do então revolucionário Jorge Amado na ficção dos claridosos-fundadores:

A Jorge Amado esta voz do irmão desconhecido: 

(…) 

Para que Zumbi dos Palmares ilumine também
os meninos de ponta-de-praia, os rocegadores de carvão e as velas dos faluchos
e a Princesa de Aioká leve os meus marinheiros para o seu palácio do fundo do mar
Para que o moleque Balduíno pegue novamente as goiabas-de-vez
Finita esteve ouvindo atabaques e gongás no candomblé do pai de santo Jubiabá. 

(…)  

Escreve Arnaldo França nos seus comentários ao Cântico da Manhã Futura, de Osvaldo Alcântara, constantes da edição comemorativa do cinquentenário da revista Claridade, que os dois poemas de Osvaldo Alcântara, parcialmente transcritos acima, são “dos mais impregnadamente brasileiros” e, por outro lado, “denunciadores de uma posição do ortónimo de Osvaldo Alcântara, nos últimos anos reforçada, quanto ao carácter euro-africano combinatório, e não de mistura, do homem cabo-verdiano”.

Curiosamente, os dois poemas, acima transcritos (“Terra Roxa de Massapés” e “Poema para Jorge Amado”) foram reeditados no número comemorativo do cinquentenário da revista Claridade, mas, tal como, aliás, o poema “Almanjarra”, não integrados no livro Cântico da Manhã Futura (Banco de Cabo Verde, Praia, 1986),de Osvaldo Alcântara, por decisão, presume-se que absolutamente soberana, do próprio Baltasar Lopes da Silva.

Relembrem-se neste contexto as referências de Osvaldo Alcântara a negros norte-americanos, nomeadamente em “Canção da minha rua” dos “Quatro poemas do ciclo da vizinha”:

a vizinha lembrou-se de que há negros americanos, 
há pássaros cantores de outras florestas,
há caboclos, há poetas do morro, 
e a sua canção sobe alvoroçada
como um abraço para todos continentes

e no poema “Meteorologia na terra zero no mês de setembro de 1972″ (neste caso, a um insólito Malcom X, omo se verifica no segunte excerto:

Metam, metam todos os plurais, colectivos, metam também
(Por favor)
Joana Hermínia Silva, 33 anos, solteira
mãe-de-filho
filha de Severino Bento Lizardo
eJoana Apolónia Silva (O Malcom X!)
que comeu papa de DDT e agora,
agora,irmãos!

2.2.4. Em António Nunes, do poema “Ritmo de Pilão”, Aguinaldo Fonseca, do poema “Herança”, Guilherme Rocheteau, do poema “Presença de Gilberto Freyre”, Amílcar Cabral, dos poemas “Rosa negra” e “Naus sem Rumo”, Jorge Pedro Barbosa, do poema “Mudjeris di Hoji”, Virgílio Pires, do poema “Reminiscência”, é uma África presente na história e no quotidiano do arquipélago (o avô escravo, a noite tropical, o ritmo do pilão, a mulher negra, a tabanca, o batuco, o fuco-fuco (isto é, o funaná), a perseguição pela igreja e pelas autoridades coloniais de manifestações culturais afro-crioulas, porque alegadamente lascivas, a renegação cultural por efeito de uma suposta modernidade, etc.) que é evocada e invocada.

É Aguinaldo Fonseca que escreve no poema “Herança”:

O meu avô escravo
legou-me estas ilhas incompletas
este mar e este céu. 
As ilhas por quererem ser navios
ficaram naufragadas
entre mar e céu.
Agora vivo aqui
e aqui hei-de morrer 

(…) 

Ah meu avô escravo
como tu
eu também estou encarcerado
neste navio fantasma
eternamente encalhado
entre mar e céu 

(…)

Para Pires Laranjeira, que presta especial atenção a Aguinaldo Fonseca, “ao publicar alguns poemas negritudistas no livro Linha do Horizonte (1951), Aguinaldo Fonseca torna-se o primeiro poeta cabo-verdiano a usar a África e o negro como temas propícios a uma leitura de compromisso rácico, num arquipélago e numa cultura que tem passado por intocado pela herança negritudinista” (Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa, Universidade Aberta, 1995).

Também exumando o passado escravocrata, escreve, por sua vez, António Nunes no poema “Ritmo de Pilão” (publicado na antologia No Reino de Caliban, de Manuel Ferreira):

Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
desde o tempo dos navios negreiros,
dos morgados,
das casas grandes,
e meninos ouvindo a negra escrava 
contando histórias de florestas, bichos, de encantadas… 

Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
e a casa grande perdeu-se
o branco deu aos negros cartas de alforria
mas eles ficaram presos à terra por raízes de suor. 

Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
desde o tempo antigo
dos navios negreiros…
(Ai os sonhos perdidos lá longe!
Ai o grito saído do fundo de nós todos
ecoando nos vales e nos montes,
transpondo tudo…
Grito que nos ficou de traços de chicote, 
da luta dia a dia,
e que em canções se reflecte, tristes)

Bate, pilão, bate
que o teu som é o mesmo
e em nosso músculo está
nossa vida de hoje
feita de revoltas!…

Bate, pilão, bate!..” .

Saliente-se que a invocação de África nos poetas acima referidos ocorre de forma paralela à exumação etnológica de determinadas manifestações culturais, negro-africanas, na terminologia de Manuel Duarte, ou representativas de “pobres resquícios” (como se refere Baltasar Lopes da Silva à tabanca), “vivazes sobrevivências da África Negra” (segundo Félix Monteiro), ou demonstrativas da diversidade cultural do arquipélago/continente cultural caboverdiano (segundo a feliz expressão de Gabriel Mariano) e das nossas matrizes e faces culturais (segundo Manuel Duarte).

Tal trabalho foi empreendido sobretudo por Félix Monteiro (em relação à tabanca e às festas da bandeira da ilha do Fogo) e Baltasar Lopes (em relação ao cancioneiro poético de Santiago abordado no ensaio “O Folclore Poético da Ilha de Santiago”, publicado no nº ……da revista Claridade) e a aspectos linguísticos do idioma cabo-verdiano, abordados nos ensaios “…….” e “Uma Experiência Românica nos Trópicos”, para além das recolhas e da estilização da poética tradicional de Santiago por Gabriel Mariano, num esforço de compreensão da totalidade da cultura radicada em Cabo Verde, por um lado, e numa atitude de registo, dir-se-ia “museológico”, daquilo que, segundo acreditavam, estava destinado a desaparecer, como supostamente estariam congenitamente condenadas a desaparecer todas as manifestações de raiz negro-africana, quer por força do alargamento da área de jurisdição do mulato e da mestiçagem cultural, ou por sua reencarnação e diluição (enquanto “África”) no substrato crioulo comum, alegadamente de predominância europeia, quer ainda por força da repressão por parte da Igreja Católica e das autoridades coloniais.

Interessante é que acresce o interesse na preservação, e, até, na revitalização dessas manifestações culturais, quando nelas se divisa qualquer influência europeia relevante, como parece acontecer com Baltasar Lopes, quer em relação ao crioulo, quer em relação às letras da finason, nas quais ele divisa influências do cancioneiro europeu medieval.

Por outro lado, a postura de Baltasar Lopes da Silva, e do seu pseudónimo poético Osvaldo Alcântara, de resgate memorialístico de manifestações culturais que ele, na sua pele de ensaísta, viria a considerar como condenadas à extinção, é também visível no romance Chiquinho, no qual são várias as referências às histórias da escravatura pela voz de Nha Rosa Calita e à vivência do batuque, pelo próprio Chiquinho, na plenamente crioula sociedade sanicolaense. 

Para Félix Monteiro, que nem sempre parece convencido da inexorável fatalidade da morte dessas manifestações culturais, as quais considera mais sincréticas que puramente (negro) africanas, vivazes e plenas de pujança e vitalidade, o caminho é a reutilização e revitalização em trajes modernos, como, aliás, aconselha no que se refere ao aproveitamento do ritmo africano das festas do pilão em orquestras modernas, ou a transformação dionisíaca das festas da tabanca, esgotadas que estariam ou viriam a estar as suas virtualidades e potencialidades religiosas, ideia a que depois aderem tanto Baltasar Lopes como Gabriel Mariano.

2.2.4. Interessante é a démarche poética de Gabriel Mariano num dos mais icónicos poemas caboverdianos de todos os tempos que é “Capitão Ambrósio”, não só pelo seu teor desassombradamente combativo, mas também pela reinvenção/transfiguração da pessoa real que dirigiu a revolta contra a fome, o mestre-marceneiro Ambrósio, homem do povo, branco de olhos azuis (como testemunha Baltasar Lopes da Silva em entrevista a Michel Laban), em “mulato Ambrósio”, “capitão do povo” rebelde, marchando sob a negra bandeira da fome.

Mulato como a maioria do povo caboverdiano, mormente dos habitantes das ilhas de Barlavento. Desta forma, logra Gabriel Mariano criar uma certa sintonia entre os seus estudos, ensaísticos, nos quais avulta “o mundo que o mulato criou” em contraposição ao “mundo que o português criou” e a sua poesia de gerundiva exasperação contra o sistema colonial.

2.2.5. Curiosamente, não há vislumbre de resgate, mediante a sua explícita nomeação, de expressões culturais ostensivamente afro-crioulas na poesia vazada em português de Mário Fonseca (Se a luz é para todos, Editora Publicom, Praia, 1998), mas uma frequente causticação dos efeitos tidos por anestesiantes e entorpecedores da morna, como nos poemas “Até quando” no qual se fala “de quem preferiu não apodrecer/em morna regada com grogue”, ou “da morna que amolece” do poema “sempre que procuro o que é paz”, ou ainda se interroga o choro do violino, do violão, do trompete, do trombone no poema “Se a luz é para todos”.

Não obstante isso, na poesia de Mário Fonseca, a inserção de Cabo Verde no mundo negro e a sua compreensão como um caso de regionalismo africano, sobretudo no sentido politicamente anticolonial e fraternitário, e culturalmente anti-assimilacionista, são levadas até às últimas consequências em poemas vários (“Eis-me aqui, África”, “América, América”, “Fosse tudo tão do continente”, “Este canto não são versos”, todos incluídos no livro Se a luz é para todos.

O poema “Eis-me aqui África”, o mais emblemático de todos e com maiores consequências na mobilização política anticolonial, dramatiza o retorno ao “continente meu/ tão perto do arquipélago/ (…) ínsula prisão”, e encena o regresso de um “filho pródigo ao útero primordial, ““às tuas entranhas/ de onde afinal/ nunca saí ”, pois que “nada nos separa”, “nem o mar, nem os Lusíadas”.

A postura, na realidade determinada pela necessidade de conquistar a independência pátria batalhando com armas na mão na terra firme africana da Guiné-Bissau nas fileiras do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde), de Amílcar Cabral, assemelha-se em muito à compreensão garveyana do regresso dos afrodescendentes da diáspora à terra-mãe africana.

Adaptando o texto de Bob Marley, dir-se-ia um “bufallo soldier, stollen from Africa, brought to Cape Verde”, que finalmente embarca no “zion train” da luta e da redenção.

A africanidade de Mário Fonseca é militantemente política e denota, por vezes, laivos de um certo “sionismo negro” na sua fortíssima incorporação dos princípios da unidade Guiné-Cabo Verde e da unidade africana propugnados por Amílcar Cabral:

Eis-me aqui Guiné-Bissau
com os teus filhos
sobre as tuas fronteiras minhas
eis-me aqui um dos teus filhos
filho pródigo à força
voltando
à antiga pátria primeira interdita.

Interessante é que neste poema a África à qual se regressa é percepcionada sob diferentes pontos de vista:

  1. Sob o ponto de vista étnico (etnolinguístico ou etno-nacional), segundo o qual os caboverdianos seriam uma das muitas etnias africanas: “Eis-me aqui Wolofs,/Sereres,/Mandingas,/Cabo-verdianos e Manjacos”;
  2. Sob o ponto dos Estados-nações independentes da chamada África Negra: “Eis-me aqui oh vós todos do Senegal/ da Costa do Marfim, / Daomé / Tchad / Nigéria / Kénia / Togo / Níger / Mauritânia / Guiné / Mali / Ghana / Gâmbia / Congo / vinde abraçar-me /apertar-me / estrangular-me /;
  3. Sob o ponto de vista de abrangência da totalidade da África, do Egipto e do Marrocos à Africa do Sul”.

É o próprio Mário Fonseca que esclarece no Posfácio ao livro Se a luz é para todos que o poema “Este canto não são versos reflecte o seu “desejo de uma só África (o que não significa recusa de diversidade) “de Cabo Verde ao Cabo da nossa Esperança” (Fonseca, 1998).

A integração na luta pan-africanista para a libertação total da África dos jugos colonial e neo-colonial não significam por outro lado qualquer corte com a sua terra natal de Cabo Verde. A via pa-africanista é primacialmente vista como a forma mais eficaz do posterior regresso a um Cabo Verde livre e soberano ou em vias de conquistar a liberdade também pela via armada.

É o que se vislumbra de forma nítida no poema “Son de Negro no Exílio” e “…..”.

Por outro lado, é perceptível a integração da luta pela emancipação dos negros de todo o mundo na luta geral pela justiça social e contra o imperialismo. Nessa luta, são especialmente destacados, em especial no poema “América, América”, os negros americanos, os seus poetas, como Langston Hughes, e os seus líderes, tais Malcom X e Martin Luther King,ao lado de Lincoln.  

Anote-se ainda que a africanidade foi sendo denodadamente reiterada por Mário Fonseca no período pós-colonial mediante a exumação da saga dos resistentes africanos, como Chaka ou Alboury Ndyai, e a homenagem à postura insubmissa de alguns políticos africanos contemporâneos, como Thomas Sankara, bem como a vituperação das chagas sociais e todos os outros danos morais e políticos causados por políticos africanos corruptos e de todas as outras maleitas materiais e espirituais perpetradas por outros “bandits des grands chemins”, como o atesta o livro La Mer à Tous les Coups (Fonseca, 1993).