Os Delírios da Cidade, no Romance das Ilhas

Os Delírios da Cidade, no Romance das Ilhas

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Apresentação da Obra

Estamos perante um autor multifacetado e perante uma obra extraordinária.


Os Delírios da Cidade no Romance das Ilhas é um livro de contos romanceados, numa marcadamente
prosa poética, que quebra algumas das regras normais da prosa, atingindo uma revivescência sofisticada, povoada de metáforas e alegorias e, simultaneamente, uma viagem, por vezes paradisíaca, mas acima de tudo com transições emocionalmente tensas. Este livro tem ritmo. Este livro tem musicalidade.

A prosa poética é uma poética especifica, com origem, no século XIX, em França e foi considerada por muitos críticos como uma primeira quebra de leis literárias, afirmando a vontade de expressão, de expressão em liberdade. É uma sublevação contra a obrigatoriedade de um código de escrita. Uns consideram esta forma de expressão literária uma fusão de géneros e outros, como eu, entendem-na como um novo género literário.

Não posso deixar de referir, desde já, porque é o próprio autor que o traz à colação, logo no primeiro conto, Arthur Rimbaud, remetendo-nos de imediato e sem rede, para o ambiente do Surrealismo ou sobrerrealismo, um movimento, como sabem, de vanguarda, do início do século XX, nascido em Paris e que viria a definir o modernismo no período entre as duas Grandes Guerras Mundiais. E, portanto, esta é a primeira nota a fazer sobressair do livro, a influencia do surrealismo, diria eu, de alguma forma condicionado pela psicanálise, através de elementos, que, naturalmente, enfatizam o papel do inconsciente na atividade criativa. Papel esse, que tem como propósito ou efeito neutralizar e destruir o racionalismo puro, que, enquanto corrente literária, se tinha imposto.

Este livro, curiosamente, observa um estilo de combinação do representativo, do abstrato, do irreal e do inconsciente. Somos conduzidos através de uma escrita aparentemente automática e intrinsecamente fluída. Porque o Danny é assim. Porque o Danny vestiu esta obra literária de arte e por ser arte libertou-a, na minha perspetiva, das estritas exigências da lógica e da razão, foi além da consciência cotidiana e procurou expressar o mundo do inconsciente e dos sonhos. O mesmo é dizer, subverteu o decoro e libertou o homem da sua existência meramente utilitária.

Nesta obra o autor restaurou os poderes da imaginação, castrados tantas vezes pelos limites do utilitarismo da sociedade burguesa, e foi criando progressivamente um enredo, ancorado numa poética de alucinação, de ampliação da consciência, em que procurou sempre, até ao final, superar a contradição entre objetividade e subjetividade, elevando o sonho e realidade, a uma espécie de realidade absoluta, de sobre- realidade. E aqui o grande e decisivo desafio, ao nível das imagens poéticas e do seu significado, é o de aproximação entre duas realidades afastadas. E quanto mais distantes forem as realidades aproximadas, mais forte será a imagem poética. A imagem estética da literatura do Danny Spínola é a síntese do mundo captado pelos sentidos e do mundo criado pela sua escrita.

Mas as referências aos clássicos e à Idade Média, a idade das trevas, estão também presentes nesta obra, designadamente, ressuscitando para estes Delírios, Dante, Beatriz e o clássico Virgílio. De resto, Dante, como Danny, interessava-se por outras artes, como a pintura e a música, e em plena Idade Média, na tal Idade das Trevas, veio afiançar no Dolce Stil Nuovo que só o amor justifica a vida.

E, Danny avança na progressão cronológica da obra até ao século XVIII para nos confrontar com a estética de Orfeu, Príncipe de Belmonte, e Eurídice, que assumiu a forma de ópera. É muito interessante, como neste livro a literatura é o fim condutor de outras artes, mas também de movimentos ligados à ética e à estética.

Como disse logo no início, este livro é uma fantástica viagem pelo espaço, que une tempos e temas universais e intemporais.

O livro é rico no recurso a figuras de estilo e traz, também, até nós grandes vultos da literatura lusófona, como os modernistas, Fernando Pessoa, de quem se diz que não inventava máscaras para escrever, mas sim poetas inteiros, e Jorge Barbosa, um autor também cabo-verdiano, como Danny Spínola, e ambos mergulhados numa escrita telúrica e social, que traz à luz do dia os problemas do arquipélago, do cabo verdiano anónimo, a seca, que eu própria testemunhei na minha última deslocação, assim como, a fome, a emigração, o isolamento e a insalubridade.

A corrente realista está, pois, muito presente nesta obra e percebe-se a variedade de elementos que a integram e que, claramente, repudiam a artificialidade do neoclassicismo e do romantismo. O Danny sente a necessidade de retratar a vida, os problemas e costumes das classes média e baixa não inspirada em modelos do passado. Contudo este realismo que detetamos em Danny é um realismo metafísico, se me é
permitida esta junção. É um realismo que vem depois de, além de tudo. O autor assume, na sua obra, um exame rigoroso da natureza fundamental da realidade, incluindo a relação entre mente e matéria, entre substância e atributo e entre necessidade e possibilidade. Nesta obra alcança-se a tentativa persistente e sistemática do autor para descrever os fundamentos, as condições, as leis, a estrutura básica, as causas ou princípios, bem como o sentido e a finalidade da realidade como um todo ou dos seres em geral.

E isto podemos encontrar nas passagens da obra que nos fala da transcendência do cosmos e do canto das sereias de Ulisses

Concretamente, isto significa que a metafísica clássica se ocupa das “questões últimas” da filosofia, tais como, os desafios que o Danny nos vai lançando ao longo deste livro: há um sentido último para a existência do mundo?

A organização do mundo é necessariamente esta com que deparamos, ou serão possíveis outros mundos Existe algum Deus? Se existe, como podemos conhecê-lo? Existe o espírito? A mente e matéria são dimensões diferentes? Os seres humanos são dotados de almas imortais? São dotados de livre-arbítrio Tudo está em permanente mudança, ou há coisas e relações que, a despeito de todas as mudanças aparentes, permanecem sempre idênticas?

E esta é a segunda importante nota desta obra, que nos revela o propósito do autor, mas também as suas grandes inquietações e angústias. Um intelectual humanista. Na vida e obra do autor percebe-se que o homem é colocado no centro do mundo. É uma perspetiva comum a uma grande variedade de posturas éticas que atribuem a maior importância à dignidade e também às aspirações e capacidades humanas, uma certa e moderada racionalidade, que não é anticlerical, mas si, verdadeiramente, ancorada no antropocentrismo renascentista e no laicismo dos filósofos iluministas. Estamos a falar, naturalmente, de pensadores ligados ao humanismo secular.

E, talvez, neste quadro é que surge Nietzche na equação do autor, na equação de Danny, num propósito de afirmação da vida, que envolve a interrogação e a desconfiança sobre qualquer doutrina que dilua ou drene a expansão do potencial humano. A sua interrogação essencial do valor e da objetividade da verdade, que tem influenciado as gerações de escritores que lhe sucederam e a própria tradição filosófica continental, nomeadamente, o existencialismo, pós-modernismo e pós-estruturalismo. A sua conceção de superação individual e transcendência além da estrutura e contexto tiveram um impacto profundo sobre os pensadores do final do século XIX e início do século XX, que usaram estes conceitos como pontos de partida para o desenvolvimento de suas filosofias, quer humanistas, quer até transumanistas.

O homem, destes Delírios, é uma individualidade irredutível, à qual os limites e imposições de uma razão que tolhe a vida permanecem estranhos a ela mesma, à semelhança de máscaras de que pode e deve libertar-se.

Nestas correntes o mundo não tem ordem, estrutura, forma e inteligência. Nele, as coisas dançam nos pés do acaso e somente a arte e a literatura podem transfigurar a desordem do mundo em beleza e tornar aceitável tudo aquilo que existe de problemático e terrível na vida.

À semelhança de Platão, com Danny parece que esbarramos na ideia de que o governo da humanidade deveria ser confiado a filósofos, mas não a simples operários da filosofia e seguramente jamais a tecnocratas.

Na obra de Danny adivinha-se o desejo de pretender que a sua obra seja um desmascarador de preconceitos e ilusões do gênero humano. O autor ousa olhar e obriga-nos a olhar, sem temor, aquilo que se esconde por detrás de valores universalmente aceites, por detrás das grandes e pequenas verdades, por detrás dos ideais que serviram de base para a civilização e nortearam o rumo dos acontecimentos históricos. E, assim, a moral tradicional não é, para ele, nada mais do que uma máscara que esconde uma realidade inquietante e ameaçadora, cuja visão é difícil de suportar.

De Cameron e Bocácio são outros constituintes que o autor nos traz neste livro, eventualmente, com o propósito não só de conectar dois séculos de história, na idade média, mas também de reafirmar o espírito humanista e realista que trespassa a sua obra e que então despontava. De Cameron fez de Bocácio o primeiro grande realista da literatura universal. Bocácio ao ler “A Comédia”, de Dante, ficou tão fascinado que a renomeou de A Divina Comédia, título com o qual a obra seria imortalizada. E volto a lembrar aqui Inferno de Dante, descrito no Canto XVII da sua Comédia, tema com o qual Danny abre este seu livro, percebendo-se o fascínio que Dante exerceu sobre Bocaccio e também sobre ti, Danny Spínola.

O leitor neste livro faz um percurso alucinante, quase vertiginoso, diria, com saltos de uma acrobacia literária apenas permitida a autores de um conhecimento histórico-literário profundo. A maleabilidade e flexibilidade da sua escrita permite-lhe passar com leveza e fluidez da abordagem ao D. Juan, por exemplo, para Milton e Pound. Este último uma referência do modernismo e do Imagismo. E na verdade o que eu senti ao ler esta obra, e esta é a terceira nota que deixo destes Delírios, é que me pareceu que estava no centro do modernismo. Nesta obra cada frase tem um ritmo que corresponde exatamente à emoção ou tonalidade da emoção que o Danny pretende expressar.

Para concluir direi que este livro nos ensina que há em cada Paraíso um inferno e em cada Inferno um Paraíso. Verdadeiramente, o homem transforma-se num ser de falta quando pretende centrar-se em metade de si ou em metade do mundo. O erro em Shakespeare é o seu “ser ou não ser”. Danny mostra-nos, pelo contrário, o seu “ser e não ser” em simultâneo, a dualidade ou multilateralidade do ser humano e do universo.

Concluirei, transmitindo a lição do autor de que encontrar o amor exige sacrifícios e por vezes descer ao inferno, é esta, meus senhores e minhas senhoras, a frase que faz o livro!

Parabéns, Danny Spínola por esta extraordinária obra que convido todos a lerem, certa como estou que serão tão agradavelmente surpreendidos como eu fui e que vão apreciar tanto quanto eu apreciei.

Lídia Praça
Lisboa, 27 de Abril de 2023