Recital Poético – António Pedro e Mário Fonseca

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António Pedro

Praia – 09/12/1909 | Moledo – 17/08/1966

Poemas de Diário

(1929)

Francisca Lima:
I
Ai árvores ali
e duras!… ai!:
e aqui
terra queimada
só.

Bé!,
o pó
da ventania
sufoca!
… Lá na baía
ou doca
ou o que é,
lá do vapor
parecia
melhor,
embora fosse careca
a terra seca,
e o sol queimasse
e adormentasse
já.
Manuel Estevão:
Cá
 há mais do que calor,
 há dor
 do sol!
 … e a preta
 de lenço branco
 lá no barranco
 da achada
 tem o ar de um sobressalto
 … E andam sombras
 pelas sombras
 como havia no mar alto…
 No entanto, 
 de não estar
 habituado a encontrar
 estas sombras aqui, 
 ainda não consegui
 o meu encanto:
 pasmar
Regina Correia:
– Paisagem, quem me adivinha? – 
 E andam sombras pelas sombras
 enquanto a noite caminha,
 dês que o luar dealbou…
 Que tentaram ensombrar-me…
 – Mas quem foi que me assombrou?
 Quem me ensombra
 não me assombra!
 … Apenas me sobressalta
 não ver os mortos da sombra
 que me fazem tanta falta!…
Luís Lobo:
V

Vi um batuque,
baque, 
bacanal!
E fiquei de olhos cansados 
– pobres selvagens! – 
a ver horas e horas
rolar a mesma dança
doida…
Mole e sensual
meneio de ancas e de ombros
num desvairo:
Bebedeira bamba
duma cópula carnal!:
Manuel Estevão:
Gemidos 
idos
daquela
goela
que se enrouquece
nesse compasso
passo
dum contra-tempo,
tempo de outro compasso,
no passo da dança dela
que me extasia…
… A negra nua
e macia,
rolando pelo mole
desejo
dele…
Carla Correia:
VII
 
E a morna
morna,
bole
mole,
já velha, sem ser antiga,
num compasso de cantiga
sexual.
: Reminiscência dum fado  
que, dançado  
num maxixe,  
tem a tristeza postiça,  
dum cansaço. 
: Um semicivilizado  
 lasso  
balanço  
embalado sobre o ventre dum fetiche
José Luís Hopffer Almada:
XI

Os brancos daqui
são mais modestos que os pretos:
os pretos chamam-se pretos,
os brancos chamam-lhe gente daqui,
e aqui… 
há brancos e pretos…

XIII

Papaias
pias
repartem
os braços - puas
e partem
a negrura do caminho!
… Linho negro
dum bruxedo,
no brinquedo
dum fantoche!…
…’tá doche
que diz a preta
de cambraias
tão bonito!…
… pirolito:
massaneta
de papaias!…
Sol a pino embriagado
que desmaia.
– Logo ao lado,
sossegado,
o menino da papaia.

Protopoema da Serra D’arga

(1948)

Carla Correia:
Sonhei ou bem alguém me contou
Que um dia
Em San Lourenço da Montaria
Uma rã pediu a Deus para ser grande como um boi
Luís Lobo:
A rã foi
Deus é que rebentou
E ficaram pedras e pedras nos montes à conta da fábula
Ficou aquele ar de coisa sossegada nas ruínas sensíveis
Ficou o desejo que se pega de deixar os dedos pelas arestas das fragas
Ficou a respiração ligeira do alívio do peso de cima
Ficou um admirável vazio azul para crescerem castanheiros
E ficou a capela como um inútil côncavo de virgem
Para dançar à roda o estrapassado e o vira
Na volta do San João d’Arga
Francisca Lima:
Não sei se é bem assim em San Lourenço da Montaria
Sei que isto é mesmo assim em San Lourenço da Montaria
O resto não tem importância
O resto é que tem importância em San Lourenço da Montaria
O resto é a Deolinda
Dança os amores que não teve
Tem o fôlego do hálito alheio que lhe faltou a amolecer a carne
Seca como a da penedia
Manuel Estevão:
O resto é o verde que sangra nos beiços grossos de apetecerem ortigas
O resto são os machos as fêmeas e a paisagem é claro
Como não podia deixar de ser
As raízes das árvores à procura de merda na terra ressequida
Os bichos à procura dos bichos para fazerem mais bichos
Ou para comerem outros bichos
Os tira-olhos as moscas as ovelhas de não pintar
E o milho nos intervalos
Regina Correia:
Todas estas informações são muito mais poema do que parecem
Porque a poesia não está naquilo que se diz
Mas naquilo que fica depois de se dizer
Ora a poesia da Serra d’Arga não tem nada com as palavras
Nem com os montes nem com o lirismo fácil
De toda a poesia que por lá há
José Luís Hopffer Almada:
A poesia da Serra d’Arga está no desejo de poesia
Que fica depois da gente lá ter ido
Ver dançar a Deolinda
Depois da gente lá ter caçado rãs no rio
Depois da gente ter sacudido as varejeiras dos mendigos
Que também foram à romaria
Regina Correia:
As varejeiras põem as larvas nos buracos da pele dos mendigos
E da fermentação
Nascem odores azedos padre-nossos e membros mutilados

É assim na Serra d’Arga
Quando canta Deolinda
E vem gente de longe só para a ouvir cantar

Nesses dias
as larvas vêem-se menos
Pois o trabalho que têm é andar por debaixo das peles
A prepararem-se para voar
Luís Lobo:
Quanto aos mendigos é diferente
A sua maneira de aparecer
Uns nascem já mendigos com aleijões e com as rezas sabidas
Do ventre mendigo materno
Outros é quando chupam o seio sujo das mães
Que apanham aquela voz rouca e as feridas
Outros então é em consequência das moscas e das chagas
Que vão à mendicidade
Carla Correia:
Não mo contou a Deolinda
Que só conta de amores
E só dança de cores
E só fala de flores
A Deolinda

Mas sabe-se na serra que há uma tribo especial de mendigos
Que para os criar bem
Lhes põem desde pequenos os pés na lama dos pauis
Regando-os com o esterco dos outros
Manuel Estevão:
Enquanto ali estão a criar as membranas que valem a pena
Vão os mais velhos ensinando-lhes as orações do agradecimento
Eles aprendem
Ao saberem tudo
Nasce de propósito um enxame de moscas para cada um
Francisca Lima:
Todas as moscas que há no Minho
Se geraram nos mendigos ou para eles
E é por isso que têm as patinhas frias e peganhosas
Quando pousam em nós
E é por isso que aquele zumbido de vai-vem
Das moscas da Serra d’Arga
Ainda lembra a mastigação de lamúrias pelas alminhas do Purgatório
Todos:
Em San Lourenço da Montaria
José Luís Hopffer Almada:
Este poema não tem nada que ver com os outros poemas
Nem eu quero tirar conclusões com os poetas nos artigos de fundo
Nem eu quero dizer que sofri muito ou gozei
Ou simplesmente achei uma maçada
Ou sim mas não talvez quem dera
Viva Deus-Nosso-Senhor
Regina Correia:
Este poema é como as moscas e a Deolinda
De San Lourenço da Montaria
E nem sequer lá foi escrito

Foi escrito conscienciosamente na minha secretária
Antes de eu o passar à máquina
Etc. que não tenho tempo para mais explicações
Carla Correia:
É que eu estava a falar dos mendigos e das moscas
E não disse
Contagiado pelo ar fino de San Lourenço da Montaria
Que tudo é assim em todos os dias do ano
Mas aos sábados e nos dias de romaria
Os mendigos e as moscas deles repartem-se melhor
São sempre mais
E creio de propósito
Ser na sexta-feira à noite
Que as mendigas parem aquela quantidade de mendigozinhos
Com que se apresentam sempre no dia da caridade
Luís Lobo:
Elas parem-nos pelo corpo todo
Pois a carne
De tão amolecida pelos vermes
Não tem exigências especiais
E porque assim acontece
Todos os meninos nascidos deste modo têm aquele ar de coisa mole
Que nunca foi apertada

Os mendigos fazem parte de todas as paisagens verdadeiras
Todos:
Em San Lourenço da Montaria
Francisca Lima:
Além deles há a bosta dos bois
Os padres
O ar que é lindo
Os pássaros que comem as formigas
Algumas casas às vezes
Os homens e as mulheres
Por isso tudo ali parece ter sido feito de propósito
Exactamente de propósito
Exactamente para estar ali
E é por isso que se tiram as fotografias
José Luís Hopffer Almada:
Por isso tudo ali é naturalmente
Duma grande crueldade natural
Os meninos apertam os olhos das trutas
Que vêm da água do rio
Para elas estrebucharem com as dores e mostrarem que ainda estão vivas
Os homens beliscam o cu das mulheres para que elas se doam
E percebam assim que lhes agradam
Os animais comem-se uns aos outros
As pessoas comem muito devagar os animais e o pão
E as árvores essas
Sorvem monstruosamente pelas raízes tudo o que podem apanhar
Carla Correia:
Assim acaba este poema da Serra d’Arga
Onde ontem vi rachar uma árvore e me deu um certo gozo aquilo
Manuel Estevão:
Parecia a queda dum regímen
Tudo muito assim mesmo lá em cima
E cá em baixo dois suados à machadada
Regina Correia:
Ao cair o barulho parecia o duma coisa muito dolorosa
Mas no buraco do sítio da árvore
Na mata de pinheiral
O azul do céu emoldurado ainda era mais bonito
Todos:
Em San Lourenço da Montaria

Mário Fonseca

Praia – 08 ou 12/11/1939 – 25/09/2009

Viagem na Noite Longa

José Luís Hopffer Almada:
Na noite longa
minha alma
chora sua fome de séculos

Meus olhos crescem
e choram famintos de eternidade
até serem duas estrelas
brilhantes
no céu imenso.

E o infinito se detém em mim
Na noite longa
uma remotíssima nostalgia
afunda minha alma
E eu choro marítimas lágrimas
Enquanto meu desejo heróico
de engolir os céus
se alarga
e é já céu

Tenho então
a sensação esparsamente longa
de vogar no absoluto.

(Selô,1962)


Onde Fincar os Pés

Carla Correia
Onde fincar os pés senão nas estrelas?
Onde senão no sólido chão das estrelas?
Todos:
Aqui?
Aqui onde medra medra a flor?
Luís Lobo:
Oh rosa!
Que amar senão tua inexistente essência?
Que amar senão teu persistente sonho?
Isto?
Isto desta implacável gramática?
Regina Correia:
Oh rosa!
Onde fincar os pés senão em tuas inexistentes pétalas?
Onde senão no inexistente sonho de tuas persistentes pétalas?
Todos:
Aqui?
Aqui onde tudo o que medra é só e apenas terra?
Francisca Lima:
Oh tu embora da terra!
Oh tu embora do chão do coração!
Todos:
Que amar senão as estrelas?
Manuel Estevão:
Que amar senão as estrelas
que estrelas são, palpitantes
E as inconsistentes rosas
Que persistentes cantam dentro do meu coração?

Beco sem Saída

Ao Dr. Antonio Carlos Baeta, “desertor de si”

Carla Correia:
No deserto
Em que tudo
não chega a ser mais que nada
Não há espaço para nada
Nem mesmo para não esperar
Ou para desertar
Pois que para lado algum
Ninguém nunca deveras partiu
Deste deserto
Ninguém nunca deveras partiu
Para lado nenhum
Luís Lobo:
Deste deserto
Ninguém
Nunca
Deveras
Partiu
Francisca Lima:
Deste deserto
            Ninguém
                    Nunca
                         Deveras partiu
De lado algum
Para lado nenhum.

Fome

Manuel Estevão:
Gargalhadas de escárnio
Rasgando
Até às comissuras dos lábios
Máscaras irónicas
Mascarando dores
Sorrisos de hipocrisia
Desfazendo em biocos
Caras mulatas
Escondendo a fome
Torvos olhares de
Piedade
Encobrindo a troça
Encobrindo também
A indiferança
De almas esmagadas
Na procissão faminta
Pelas ilhas
Em solidão…
Todos:
E a fome a desfazer-se
Em sorrisos de hipocrisia…
E a fome a desfazer-se
Em irónicas gargalhadas…
Francisca Lima:
Crianças magras
Sobrecarregadas
Com o peso inútil
De enormes barrigas
Inchadas
Explorando
Anormalidades da natureza
Num esforço vão
De apaziguar
O animal horrendo

Crescendo-lhes
Por dentro
A voltear
A revoltear
A espernear
Boca escancarada
Língua pendente…
Regina Correia:
Crianças doentes
Abandonando
Imundas palhotas
Abandonando lágrimas
Gritos
Pedidos roucos
Para roubar
Pelas sombras da noite
Restos desprezados
De toscas refeições…
Todos:
E a fome a estrangular…
E a fome a espernear…
Boca escancarada
Língua pendente…
Luís Lobo:
Mulheres batidas
E rebatidas
Passeiam
Seus corpos usados
Pela calçada suja
Das ruas
Ruas servindo de leito
À noite
Quando as sombras
Já desceram sobre o mundo…

Mulheres condenadas
Esfomeadas
Forjando
Perdidas sensualidades
Entre o cimento frio
E os corpos asquerosos
De vagabundos sifilíticos…
Todos:
E a moeda
A tilintar…
E a fome a escoucear…
Carla Correia:
Bêbados
Desvairados
Pela febre
De mais um copo
Olhos aquosos perdidos
Num mar de "grogue"
Narinas farejando
Realidades
Dos sonhos
Das noites de orgia
Violão espancado
Rouco
A tiracolo
Seguem
Quai bandoleiros
Ao assalto dos botequins…
Todos:
E a fome a gotejar…
E a fome a escorrer…
Pelos gargalos quebrados
De garrafas fedorentas.

Seló, n° 1 (1962)


Esta é a Candente Terra

A la mémoire de mon jeune frère, Daniel Rui de Almeida Fonseca, sous — lieutenant de l´armée portugaise, mort a l´âge de 24 ans, en combat, au Mozambique.

José Luís Hopffer Almada:
Esta é a candente terra de negrura
Onde debalde ficamos a nossa dor
E o sangue inocente que ainda jura,
No chão da maldição, em imenso clamor.

Olvidado na pompa e na púrpura
Da investidura de reinos sem pudor,
Construídos no terror e na mentira
Da traição à sacra promessa de amor.

Esta é a pungente terra de amargura
Onde como erva torpe medra a dura
Ditadura e cresce o crime no negrume
Da súplice solidão em que a multidão
Vencida já nem crê que o afiado gume
Que redime decepe o poder da negridão.

Som e a Idade

Carla Correia:
Acocorado na selva de si 
O caçador esta à coca
De um só som que o arranque
Da carcaça trôpega
Que lhe impingiu a idade.
Manuel Estevão:
Vem cheia de graça ó tu
Contra quem nada pode a idade
E sacode mesmo se com a força
Última de um ponto final
Esta canga podre da idade.
Luís Lobo:
Vem mesmo se com força tanta 
Sobretudo se com força tanta
Que arrebente
Mas que arrebente de vez
Com esse invólucro postiço da idade
Que não é meu e me possui.

Morrer Devagar

Regina Correia:
Regressar 
à pedra

E enforcar a corda
para perecer aos pedaços 
caindo aos pedaços

Pequeninamente 
milimetricamente 
idênticos

Aos da mesmidade
tão longamente buscada 
finalmente encontrada.

Regressar 
à pedra
e custe o que custar

À paulada
ou à cabeçada 
à dentada
ou à pedrada

Empurrar 
para longe
para bem longe 
dos longes do mar

O artificio azul-verde 
sem o qual
mesmo com motor 
nenhum pássaro é asa.

Regressar 
à pedra
e arrependendo-se
de ter vagueado e sonhado 
pelas colinas verde-azuis 
de Chankly Bore

Fazer mea culpa 
e entrar na pedra
para nunca mais dela sair 
como o involuntário inquilino 
de um túmulo de pedra 
selado com chumbo.

Enquanto não Soar a Hora

Luís Lobo:
Enquanto não soar a hora da minha morte,
Louvar eu quero a sorte que me couber,
Já que, por mais que amar, um tão forte
Amor, que só a morte mata, merecer
Manuel Estevão:
Não posso, ainda que tivesse arte.
Mulher, enquanto durar o vício de viver,
Que persiste mesmo quando é mais morte
Que vida, a vida que consente o poder,
Carla Correia:
Quero somente andar, nadar e cantar,
Comungar e cultivar o meu pomar,
E à tua amada sombra adormecer…
Todos:
Pois só inepta sina ou príncipe consorte
Pode requerer poder a quem tem poder,
Que este com sorte e morte se merece,
Com morte e arte permanece.

Mon Pays est une Musique

Mon pays est une musique que j’entends quand je n’entends plus rien.
Mon pays est une couleur où plonger est mon bonheur.
Mon pays est une musique qu’un enfant a jadis cachée dans une conque.
Mon pays est une conque. Y habite une huître dont le destin est un métier.

Mon pays est une musique. Tu l’écoutes quand je l’entends la mer vient.
Mon pays est un nombre. Dix couteaux impitoyables dans mon cœur consentant.
Mon pays est une musique. Dieu lui-même n’empêchera mon cadavre de l’écouter.
Mon pays est un nom. Le seul lieu que j’aime parce que je t’adore.
Mon pays est une musique. Ce son à nul autre pareil je le veux perpétuer.
Mon pays est un prénom qui m’empêche de mourir. Le tien, ô rose de mon sang!

Mon pays est une musique 

(1986)